Reprodução/Record Há um ano, David Souza Santos perdeu um de seus braços após ser atropelado na avenida Paulista, em São Paulo |
Foram várias as vezes em que o ciclista David Santos Souza se pegou imaginando como seria sua vida caso não tivesse trocado de pista na avenida Paulista um ano atrás. Provavelmente, neste destino imaginário, Souza não teria sido atropelado pelo motorista Alex Siwek, nem perdido seu braço direito no acidente.
Idealizar desfechos diferentes para a própria história é uma das ações mais comuns entre as pessoas que passam por algum tipo de trauma, seja ele de qualquer natureza — luto, episódios violentos, traição, demissão, desastres. Segundo especialistas, trata-se de uma maneira de tentar racionalizar o que aconteceu.
“Fiz isso por um tempo, mas uma hora percebi que era perda de tempo”, lembra o ciclista, que garante não remoer mais aquela noite, em que um carro passou por cima dele e de sua bicicleta, mutilando-o e abandonando-o ferido sem socorro.
Para a maioria das vítimas de trauma, é comum também buscar algum tipo de ajuda psicológica para tentar superar o problema. No caso de David, ele procurou orientação logo após sair do hospital, depois de 15 dias internado.
No entanto, o ciclista conta que a experiência não foi satisfatória.
— Fui obrigado, era prescrição médica. Foram pouco mais de dez sessões, e então tive alta. Se eu pudesse escolher, não tinha ido. Preferia que fosse um amigo me ouvindo, e não uma estranha.
Pensamento parecido teve Kelen Ferreira, uma das sobreviventes do incêndio na boate Kiss, há pouco mais de um ano, em Santa Maria. A estudante teve 18% do corpo queimado, parte da perna direita amputada, e passou dois meses e meio internada.
— Logo no início eu fazia terapia, mas resolvi parar pois não me sentia bem conversando com alguém que não era do meu círculo familiar e de amigos. Acho que o que aconteceu tinha que ficar só comigo e com quem estava próximo.
Encarar trauma de frente
As reações a traumas são de fato muito variáveis. De acordo com o psiquiatra Luiz Vicente Figueira de Mello, supervisor do Programa de Ansiedade do IPQ HCFusp (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo), os desdobramentos de um episódio traumático dependem muito do embasamento hereditário do indivíduo, e da construção de sua personalidade.
— O ideal em todos os casos é que a pessoa encare o trauma de frente, porque só assim ela vai se dessensibilizar. A resolução só acontece a partir do momento em que se repete a exposição do paciente às memórias do trauma. Aquele que não trata corre o risco de ficar com sintomas para sempre, e ter sua vida muito prejudicada.
Kelen lembra que, nos primeiros meses após o incêndio, teve dificuldades em lidar com o trauma daquela noite que matou 242 jovens, inclusive as amigas com quem ela tinha ido à boate.
Segundo ela, a parte mais difícil era o fato de se lembrar de tudo, já que saiu da boate acordada, e só “apagou” na hora em que foi entubada, já no hospital.
— No começo eu só chorava, não queria aceitar. Eu tinha apenas 19 anos, bonita, cheia de vida. Achei que minha vida tinha acabado quando me contaram que perdi parte da perna. Ainda é difícil, não sei se um dia vou superar. Mas eu tinha duas escolhas: ou chorar para o resto da vida, ou dar a volta por cima. E foi isso que aconteceu, graças à minha força de vontade, fé em Deus e apoio dos meus pais, familiares e amigos, que sempre estão do meu lado, me aceitando e me dando a mão.
Volta por cima
O ciclista Souza credita a superação de seu trauma às atividades físicas. Além de não ter deixado de andar de bicicleta mesmo após o atropelamento, ele conta que também luta muay thai e faz aulas de dança.
— Sou viciado em adrenalina. Se eu parar, morro. Conquistar independência com minha nova condição, sem um dos braços, também me ajudou a esquecer a dor e seguir em frente.
O tempo de recuperação de um trauma depende de sua natureza. Segundo a psicóloga especializada em luto Daniela Lemos, no caso de quem vive a morte de alguém próximo o primeiro ano é o mais complicado.
— As primeiras datas comemorativas são sempre muito complicadas, porque fazem a pessoa voltar a prestar atenção na perda e, por consequência, sofrer por elas novamente. O primeiro Natal, o aniversário da morte, tudo é motivo para que a dor reapareça.
Tempo de superação
Já para situações de trauma como perda de emprego ou separação, a melhora começa a surgir a partir de cerca de seis semanas, conforme explica o psiquiatra Figueira de Mello. E, em caso de acidentes, como aconteceu com Kelen e Souza, o prazo é um pouco diferente.
— Após um trauma violento de estresse agudo, a pessoa ou se recupera a partir de cinco semanas, ou começa a piorar após este mesmo período. Neste caso, ela apresenta sintomas como depressão, crises de pânico, isolamento social, fobia de retornar ao local do acontecido, flashbacks e pesadelos.
Kelen, por exemplo, passou por isso.
— Sonhei com aquela noite várias vezes. Em muitas delas, eu sinto o calor queimando meus braços, em outras sei que vai pegar fogo e saio correndo, tentando salvar as outras pessoas.
Assim como o ciclista, ela chegou a ser medicada com antidepressivos, mas abandonou o tratamento por conta dos efeitos colaterais e distúrbios do sono. Mello explica que remédios só se tornam estritamente necessários quando há perda de funcionalidade do paciente.
— Se ele não volta às suas atividades normais, se tem medo de sair, se fica na cama por mais de um mês, aí entramos com a medicação. Mas, mais importante que remédios, é respeitar o processo de cada indivíduo, e jamais forçá-lo a fazer o que não quer naquele momento.
R7
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