Nicole Bengiveno/The New York Times
Órgão sendo transportado para o transplante: nova lei israelense
prioriza quem já é doador
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Um dos pontos mais angustiantes da medicina é a lista de transplantes . Pela minha experiência, indicar pacientes para receber um órgão transplantado – coração, fígado, rim – é o início de uma espera angustiante.
A cada minuto que passa, o paciente e eu assistimos ao declínio do seu estado clínico, guardando o tempo todo a excruciante esperança de que alguém morra a tempo de disponibilizar um órgão.
No caso da doação de rim, que pode ser feita por um doador vivo, há a esperança desesperada de que alguém decida fazer esse enorme sacrifício pessoal.
Alguns dos meus pacientes morreram esperando, o que, infelizmente, não é um desfecho incomum.
Estima-se que 18 pacientes da lista de espera de transplantes morram por dia nos Estados Unidos.
Assim como ocorre em muitos países, contamos com um sistema simples de altruísmo, ou com o que poderia ser chamado de sistema de consentimento prévio. Esperamos que as pessoas façam um cartão de doador de órgãos porque acreditam que isso é a coisa certa a fazer, ou que as famílias consintam a doação depois de um ente querido ter morte cerebral, porque isso ajuda outra pessoa.
Contudo, esses mecanismos não chegam a resultar na disponibilização de órgãos suficientes para todos os pacientes que deles necessitam.
Outros países, como Espanha e Áustria, experimentaram uma abordagem de consentimento chamada consentimento presumido. Presume-se que todo paciente que morre tenha concordado com a doação de órgãos, a menos que a pessoa tenha especificado a negação de tal consentimento. No entanto, essa medida não aumentou necessariamente o número de doações de órgãos, em parte porque os médicos acham extremamente difícil ir contra os desejos das famílias, se os membros sobreviventes da família se opuserem fortemente à doação.
Israel tem sido pioneiro de uma terceira maneira de aumentar as doações. Até agora, o país estava entre os últimos países na lista de nações ocidentais no que diz respeito à doação de órgãos. A lei judaica proíbe a profanação dos mortos, o que tem sido interpretado por muitos como uma proibição da doação de órgãos pelo judaísmo.
Além disso, houve polêmicas rabínicas em torno do conceito de morte encefálica, o estado em que os órgãos normalmente são coletados. Como resultado disso, muitos pacientes morreram à espera de órgãos.
Israel, então, decidiu experimentar um novo sistema que dará prioridade de transplante aos pacientes que concordarem em doar seus órgãos. Ao fazê-lo, tornou-se o primeiro país a incorporar critérios não-médicos ao sistema de prioridade, apesar da necessidade médica ainda merecer prioridade máxima.
A ideia foi do médico Jacob Lavee, um cirurgião cardiotorácico que dirige o programa de transplante de coração do Centro Médico Sheba, em Tel Hashomer. Em 2005, ele recebeu dois pacientes judeus ultraortodoxos na sua ala. Ambos estavam aguardando transplantes de coração.
Os pacientes lhes confidenciaram que nunca considerariam doar órgãos, de acordo com as crenças judaicas ultraortodoxas, mas que não tinham absolutamente nenhum problema quanto a aceitar órgãos dos outros.
O fato de que os judeus haredi, como os ultraortodoxos são conhecidos em Israel, não doavam órgãos era bem conhecido no país. Mas essa foi a primeira vez em que Lavee ouviu alguém reconhecer tal paradoxo.
A injustiça de um segmento da sociedade não estar disposto a doar órgãos, mas ficar feliz por aceitá-los, incomodou Lavee. Depois de operar os dois pacientes, oferecendo a ambos um novo sopro de vida, o cirurgião elaborou uma proposta que daria prioridade aos pacientes que desejam doar órgãos.
Trabalhando com rabinos, eticistas, advogados, acadêmicos e membros da população em geral, ele e outros médicos especialistas trabalharam na criação de uma nova lei em 2010, que entrará em pleno vigor neste ano: se dois pacientes tiverem necessidades médicas idênticas de receber um transplante de órgão, a prioridade será dada ao paciente que tenha assinado um cartão de doador, ou cujo familiar tenha doado um órgão antes.
Um componente fundamental do sucesso da lei foi envolver a influente liderança religiosa do país, que por muito tempo havia sido resistente à doação de órgãos. Mesmo as famílias que integram a metade do país que é fortemente secular, quando confrontadas com a morte e a decisão de doar órgãos, “de repente se tornam bastante religiosas”, disse Yael Haviv, diretor médico do programa de doação de órgãos do Sheba. “De repente, elas recorrem aos rabinos”, diz o especialista.
Porém, no Talmude, salvar a vida de alguém é mais importante do que quase tudo, e muitos mandamentos podem ser transgredidos em prol desse objetivo. Com base nisso, seria possível dizer que a doação de um órgão cumpre uma das maiores virtudes religiosas.
Os legisladores também concordaram quanto a uma definição de morte encefálica aceitável para a grande maioria dos rabinos (embora não para os ultraortodoxos haredi), bem como para os imames locais, tornando a doação de órgãos aceitável para um grande segmento da população.
Isso foi acompanhado por uma campanha de sensibilização a respeito da doação de órgãos, com anúncios em rádio, TV, outdoors e jornais promovendo a novo sistema de prioridades e combatendo a ideia de que a lei judaica proíbe a doação. Os centros comerciais e cafés foram cobertos por informações sobre a doação de órgãos. A reação foi impressionante, com os potenciais doadores registrando cartões de doação em massa.
“Fomos inundados”, disse Tamar Ashkenazi, diretora do Centro Nacional de Transplantes de Israel.
A máquina que imprime os cartões de doação de órgãos geralmente faz 3 mil por mês – 5 mil se dois trabalhadores se dedicarem em tempo integral a operá-la. Durante as 10 semanas da campanha publicitária, 70 mil israelenses solicitaram cartões de doação de órgãos.
O índice de consentimento das famílias já aumentou e o número de órgãos disponíveis para os pacientes aumentou paralelamente. No total, os transplantes, até agora, aumentaram em mais de 60% neste ano.
Outro aspecto da nova lei é fornecer uma “compensação justa” aos doadores vivos, que cobre 40 dias de salários perdidos, além de despesas relacionadas à doação.
“Isso serve para eliminar os desincentivos à doação”, disse Lavee.
Isso já fez com que os transplantes de rim de doadores vivos – quase sempre provenientes de familiares dos pacientes – aumentassem drasticamente.
O novo sistema, porém, também tem críticos. Muitos dizem que associar fatores não-médicos à alocação de órgãos é algo inerentemente antiético. Alguns dizem que a lei consagra a discriminação religiosa, já que os pacientes Haredi ser recusam a doar por conta de suas crenças religiosas.
Ainda assim, muitos acreditam que a nova lei acrescenta um grau de justiça ao processo de doação, e agora há mais órgãos disponíveis para todos. Será interessante ver como as coisas se desenrolam quando o sistema de prioridades entrar em vigor, no dia 1º de abril.
* Por Danielle Ofri, médica e escritora
iG
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