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terça-feira, 19 de julho de 2011

Uma cidade contra o câncer


Como o complexo hospitalar de Barretos arrebatou um mundo de anônimos dispostos a colaborar com a cura ou minimizar a dor alheia

“Não há vagas”. Nunca. A pousada Rosa Amiga, uma das muitas que circunda o hospital de Câncer de Barretos, interior de São Paulo, tem lotação constante. A placa é fixa na parede, logo na entrada do estabelecimento e antecede às perguntas.

Maria Rosa Oliveira de Pádua construiu uma estrutura simples que comporta 56 pessoas, não aceita turista e recebe o pagamento das prefeituras para as quais trabalha. Seus hóspedes são oriundos de cinco cidades e estão em tratamento contra algum tipo de câncer, com ou sem acompanhantes.

Rosa faz parte de um mundo de anônimos que, por vocação ou acaso, direcionaram uma parte da vida para combater o câncer. Assim como ela, outros personagens habitam uma cidade universal, sem localização precisa, que se move por um bem

A história de Rosa Amiga começou há 16 anos. Ela vendia salgados para os funcionários da fundação Pio XII, berço do Hospital de Câncer - Entidade que se tornou referência mundial no tratamento de neoplasias e hoje recebe mais de três mil pacientes por dia, de todos os estados do País. Simpática e de sorriso fácil, Rosa rapidamente estabeleceu uma relação de confiança na Instituição. Pacientes que procurava um lugar mais caseiro para ficar, dispondo de algum recurso, eram recomendados a ela. A fama de acolhedora e disponível, gerada pelo boca-a-boca após sucessivas indicações, tornou-se ganha-pão.

O pacote completo na pousada inclui hospedagem, café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. A comida caseira, sempre quentinha e cheirosa, talvez seduza mais do que a necessidade de uma cama para dormir. Quem passa na frente, estranha o movimento. Os hóspedes-pacientes estão sempre sentados ao sol, conversando tranquilamente, rindo, como se a doença fosse apenas coadjuvante da estadia em Barretos.

A relação não é meramente comercial. Além do básico, ela não economiza esforços para arrecadar verba na compra de medicamento, socorrer quando preciso e está sempre presente para jogar conversa fora ou divertir. “Fiz disso a minha profissão e me sinto vocacionada, escolhida. Tenho nove filhos, mas considero meus hóspedes uma família. Eles me vêem como uma mãe, sabem que podem recorrer.”

Sem hipocrisia, Rosa reconhece que precisa do dinheiro pago pelas prefeituras para manter as contas em dias, mas lidar com a doença impõem regras e éticas por vezes sem causa ou razão aparente. Desde que começou a trabalhar diretamente com o câncer ela decidiu que jamais cobraria a hospedagem de uma criança. A conta não é repassada a nenhuma prefeitura no caso de câncer infantil.

Bianca Sayuri Teshima já passou quatro de seus nove anos brincando de esconder a cabecinha careca com lenços e boinas. Rosa finge não reconhecer a menina todas as vezes que ela cruza o salão de entrada da pousada com um acessório novo. A brincadeira dá certo, e Bianca gargalha.

Na luta contra seu segundo câncer, a pousada é, por ora, a primeira casa de Bianca e Rosa, uma avó postiça. “Sinto como se ela fosse minha também. Vivo todas as alegrias e tristeza dela há quatro anos. Meu maior sonho é que ela seja curada.”

Comover-se ou não com a doença alheia é uma questão de escolha. A cidade, embora viva em função do Hospital, não necessariamente reage a favor dele. Mas, de certa forma, como reconhece o próprio diretor da Instituição, Henrique Prata, a maioria da população valoriza e contribui, seja com pequenas rifas e doações ou através de movimentos isolados que independem da localização geográfica.

Distante fisicamente, Danielle Correia da Silva é telefonista de um banco em Osasco, mas há cinco anos presta uma espécie de serviço voluntário aos pacientes que se tratam em Barretos. Os números telefônicos do banco e da central de atendimento do Hospital são exatamente os mesmos. A diferença está apenas no código de área - mero detalhe para quem precisa agendar uma consulta, cirurgia ou enviar resultado de exames.

“As pessoas sempre esquecem ou nem sabem. Atendo, em média, seis ligações por dia de parentes ou pacientes. O número do fax também é igual. Muitas vezes eu nem aviso, apenas repasso o documento para o Hospital e explico o que ocorreu, assim agiliza e não estica o sofrimento de ninguém.”

Danielle revela que aprendeu a falar "código de área" em inglês para que seu apoio também fosse internacional. Apesar da dedicação, ela treinou a fluência na língua apenas uma vez. “Estava com os livros da minha aula na mesa, falei pausadamente para a pessoa entender. Vi que ela estava com a voz embargada procurando algum médico. Deu certo”.

Além dos anônimos, a participação direta de famosos está na vitrine e é impossível ser indiferente a eles. Na entrada principal, a triagem é feita com a ajuda das celebridades. “Já fez o exame no Gian e Giovanni? Então agora você deve ir pro Zezé de Camargo e Luciano", berra a atendente. Gritar é imperativo. É um mundo de gente buscando uma coisa só.

Todos os que tiveram seus nomes associados a uma estrutura de concreto, em algum momento da história do Hospital de Câncer, contribuiram através de robustas doações.

Promessa não se conta

Segundo levantamento feito pela ouvidoria do Hospital, 50 famílias barretences, após vivenciarem a experiência de cura ou acompanharem o sofrimento de parentes, fizeram o voto de abrigar gratuitamente pacientes que não possuem condições de custear a estadia que o tratamento impõe.

“É uma espécie de promessa para alguns. Sabemos da postura dessas pessoas e indicamos pacientes, mas as próprias famílias não querem que isso seja divulgado. Muitas hospedam conhecidos, ou amigos de amigos”, revela Henrique Prata.

Sensibilizada após vivenciar o câncer de duas primas e um irmão, Sandra Ferreira Negrão, de 52 anos, abriu sua casa para uma antiga vizinha da mãe, uma senhora de 52 anos, com quem teve contato apenas durante a infância, em Carmo do Rio Claro, interior de Minas Gerais.

“Fiquei sabendo que essa senhora estava hospedada em um hotelzinho aqui de Barretos e só chorava. Ela estava sozinha, longe da família, sofrendo muito. Já tinha feito a cirurgia para retirar o tumor no estômago. No mesmo dia fui buscá-la para morar comigo.”
Durante oito meses, entre idas e vindas até a cidade natal, Cremilda, a ex-vizinha, fez parte da família. Hoje, o quarto onde a tal senhora ficava virou ateliê de costura. Sandra tinha uma confecção, mas foi à falência no final do ano passado. Levou os equipamentos para dentro de casa e atende as freguesas no espaço que cedia aos pacientes.
Até o final do ano, porém, revela que deve voltar a oferecer ajuda. Uma das filhas se casará em dezembro, e novamente terá um cômodo disponível. “A princípio ajudei parentes e essa senhora, mas se eu ficar no hospital e ver alguém muito mal precisando de ajuda, eu levo pra casa. Minha família é alegre, unida, acolhedora. Temos muito mais do que um quarto para oferecer. Carinho, nessas horas, aumenta a expectativa de vida." Talvez Sandra tenha razão. Segundo ela, Cremilda viveu um ano e três meses a mais do que o previsto pelos médicos.
Motorista de Jaleco
Foto: Divulgação
Eduardo e o médico da carreta começam a montar a estrutura de atendimento
 
José Eduardo Teixeira, motorista há 25 anos, viu seu trabalho ganhar contornos maiores desde que assumiu o comando de uma das carretas de prevenção do Hospital, em 2005. Um grande caminhão com capacidade para realizar pequenos procedimentos cirúrgicos, percorre diversas regiões do Brasil oferecendo consultas, exames e informação sobre o câncer. Em média, Edu, como é conhecido pela equipe que acompanha, passa mais de 45 dias fora de casa.

Para que sua função não seja limitada ao volante, ele se encarrega de recrutar pacientes, avisando que a trupe médica chegou. Ajuda os profissionais a montar a estrutura de atendimento, organiza as filas e tem estômago para assistir às cirurgias de urgência.

Apesar do jeitão machão, tem sensibilidade e traquejo para papear. Edu conseguiu informações privilegiadas em uma cidade no interior de São Paulo, próxima a Birigui. Ao estacionar a carreta e fazer a propaganda do atendimento, sentiu um clima pesado entre os moradores quando o assunto era câncer. Ninguém queria se aproximar. Em pouco tempo, soube que um senhor de 56 anos, motorista de ambulância da região, tinha falecido no dia anterior por conta de um câncer na próstata.

“Ele morreu por puro machismo. Sabia que essa doença mata mesmo, tinha acesso à informação, conhecia médicos, mas tudo mundo disse que ele se recusava a fazer exame de próstata.” Tal história marcou a vida profissional de Eduardo. Aconteceu durante uma das primeiras viagens como motorista da carreta de prevenção. Hoje, embora sinta saudades de casa, revela, sem falsa modéstia, que se sente um pouco "doutor" também. “Sei que faço parte não apenas como motorista. Ajudo da forma que posso.”

Ações pontuais, mas numericamente expressivas, fazem crer que a doença aproxima e acolhe. Barretos, sozinha, não vive apenas de altruístas e solidários. Há quem desconheça a fronteria entre comércio e exploração, e coloque mais de 10 pacientes agonizando em um quarto de hotel - realidade também registrada pela reportagem. O lado B, embora exista, permanece obscuro ao calor quase constante de uma região tipicamente tropical.

Fonte IG

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