Infectologista integra comissão da OMS para ebola e fala sobre os riscos de expansão da infecção letal em entrevista exclusiva
O protocolo da OMS foi cumprido no caso da suspeita de ebola no Brasil ou houve um excesso de zelo, como alegam alguns?
Sim, não tenho dúvida de que o país seguiu o protocolo internacional. Era um caso suspeito, é isso mesmo, temos que ter cuidado. Serviu como teste para quando, inevitavelmente, a doença surgir.
Então o senhor acha que a doença vai chegar de qualquer jeito?
Sim, acho que há um risco aumentado para qualquer país. Tudo vai depender da extensão da epidemia da África. Num mundo globalizado, não dá para pensar de outra forma. A questão hoje é saber onde, como e a capacidade de controle do país atingido. Mas que vai acontecer, me parece inevitável.
O senhor acha que a resposta mundial está à altura do desafio?
Uma série de medidas foi tomada na última semana. Eu estava na reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova York, onde o tema foi debatido e o apoio foi unânime. Houve uma mobilização mundial inédita para responder ao problema. Talvez isso pudesse ter acontecido antes, talvez já houvesse evidência para agir antes, mas começou. A mobilização de recursos, no entanto, ainda está abaixo do esperado.
A situação piorou em Serra Leoa?
Estão sendo aplicadas lá o que chamamos de medidas paliativas, no caso, tratamento domiciliar. Porque não existem centros para tratar os pacientes. Esse tipo de tratamento, como você pode imaginar, não tem impacto na sobrevida do paciente e muito menos na interrupção da cadeia de transmissão.
Dada a extensão da epidemia (já são mais de 8 mil casos registrados) atual e o fato de o vírus ser altamente transmissível, o que pode ser feito?
Trata-se de uma doença extremamente grave, com letalidade muito alta. É uma epidemia complexa. O objetivo primário é tentar tratar o paciente, salvar sua vida. Mas é a cadeia de transmissão que vai determinar sua expansão. Uma das formas de deter isso é o diagnóstico precoce — mas isso não está acontecendo na África. Os pacientes estão chegando muito tarde aos centros de saúde, transmitindo o vírus em larga escala antes de serem isolados.
E como fazer, então, para interromper a cadeia de transmissão e conseguir frear a epidemia?
Precisamos de ações comunitárias intensas, de casa em casa praticamente. Temos que identificar os doentes e isolá-los. O que me preocupa é que, atualmente, a atenção está apenas em um lado do problema. As unidades de saúde respondem apenas a uma parte do problema e essa parte é a ponta do iceberg.
O senhor poderia explicar melhor?
Quando ocorre um surto isolado de ebola (como vinha ocorrendo até agora), o paciente chega à unidade de saúde e é isolado. Era feito um rastreamento de seus contatos, um número que, em geral, oscila de 30 a 50, e essas pessoas eram monitoradas e, eventualmente, internadas. Mas quando o surto vira epidemia, atingindo milhares de pessoas como agora, isso não é mais eficaz. E sobretudo em países com um sistema de saúde precário.
A atual epidemia será permanente, como a da Aids?
Com o volume e a progressão geométrica do número de casos, se não houver uma forma radical de interromper a cadeia de transmissão, acho que podemos dizer, ao menos, que será uma epidemia bem longa. Não será resolvida a curto prazo. Trabalhamos com a projeção de termos de 1,4 a 1,5 milhão de casos já no início do ano que vem. O problema é saber com que extensão e por onde ela se alastrará.
Teremos, então, uma pandemia?
O risco de expansão internacional não será definido pelos casos esporádicos de ebola fora da África (que são inevitáveis), mas sim pela progressão da epidemia em Libéria, Serra Leoa e Guiné nos próximos meses. Neste momento, temos uma epidemia de grandes proporções nos três países. Mas não se trata de um problema restrito àquela região. Se quisermos impedir a expansão, temos que agir lá. A expansão, por sua vez, não terá o mesmo impacto em todos os países. O que me preocupa são locais que reúnam fatores capazes de acelerar a disseminação.
O senhor poderia exemplificar?
Me preocupa muito lugares que tenham, por exemplo, grandes contingentes populacionais, sistemas de saúde precários e uma comunidade não preparada. Apontar um lugar é difícil, mas estou falando de uma combinação de fatores.
O principal, agora, em sua opinião, é combater a epidemia na África?
A prioridade absoluta é reduzir o impacto e a transmissão nos países mais afetados, preparar os sistemas de saúde do mundo para que saibam lidar com a situação caso se deparem com ela e preparar também as populações. Mas, se perdermos esta batalha, e ela já está avançada por lá, o risco de perdermos a guerra é muito grande. Temos uma janela de aproximadamente seis meses.
O Globo
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