Conhecendo a cocaína como o que ela é hoje, é difícil acreditar que a substância já foi promovida como uma droga milagrosa, vendida e elogiada por algumas das maiores mentes na história da medicina, incluindo Sigmund Freud e pioneiro cirurgião William Halsted.
Segundo o historiador Howard Markel, a cocaína foi promovida até mesmo por Thomas Edison, pela Rainha Vitória e pelo Papa Leão XIII.
Em 1884, Sigmund Freud era um jovem médico em Viena, lutando para ganhar a vida e ser mundialmente famoso. Ele só precisava de uma descoberta: e achou que a tivesse encontrado.
Ele escreveu sobre a cocaína para sua futura esposa: “Se tudo correr bem, vou escrever um ensaio sobre ela e espero que ganhe seu lugar na terapêutica, ao lado da morfina e superior a ela. Eu tomo pequenas doses regularmente contra a depressão e contra a indigestão, e com o mais brilhante de sucesso”.
Foi uma estreia explosiva que ecoaria um século depois, quando a cocaína ressurgiu como um tipo diferente de droga milagrosa: o tipo que poderia ajudá-lo a festar a noite toda, sem efeitos nocivos ou risco de vício.
A história nos conta, no entanto, que tal entusiasmo passou, e a explosão deixou destroços de vidas humanas para trás.
Freud não foi o primeiro a escrever sobre a cocaína. A droga é derivada da planta de coca, que os nativos da América do Sul mascaram durante séculos e ainda mascam.
Em 1880, uma série de empresas teve sucesso em criar uma versão concentrada da planta: cloridrato de cocaína, dezenas a centenas de vezes mais poderoso do que mastigar uma folha de coca.
Na década de 1880, a literatura médica consistia em relatos de casos da droga. Médicos escreviam sobre tentativas e erros com pacientes.
De acordo com o historiador Markel, Freud devorou esses relatórios e escreveu seu próprio. O resultado, em 1884, foram 70 páginas de homenagem ao pó branco que Freud pensou que podia ser uma cura para o vício da morfina.
De alguma forma em seu êxtase, ele mencionou apenas de passagem que a droga poderia também servir como um analgésico tópico potente – forma a qual ainda é usada às vezes.
O cirurgião pioneiro William Halsted, na época com 32 anos, já era conhecido em Nova York quando leu o artigo de Freud e foi imediatamente atraído para explorar o uso da cocaína como analgésico.
Além de altas taxas de infecção, a cirurgia na década de 1880 era um negócio brutal. Éter e clorofórmio eram usados como anestésicos, mas, de acordo com Markel, médicos e enfermeiros tinham que lutar, literalmente, com o paciente para mantê-lo parado.
Buscando um método melhor, Halsted começou a injetar cocaína em seus próprios membros, assim como de amigos, alunos e colegas.
Ele de fato descobriu um meio valioso de amortecimento das terminações nervosas, mas a descoberta veio a um preço elevado.
Alguns meses depois, quando um paciente entrou na sua sala de operações com uma fratura na perna, o cirurgião estava destroçado física e mentalmente. Markel conta que Halsted estava tão drogado de cocaína que sabia que não poderia operar.
Então, tomou um táxi e foi para casa, permanecendo lá durante os próximos sete meses, se drogando. Sem dúvida, diz o historiador, houve muitos viciados como Halsted, mas em grande parte os problemas foram escondidos por uma onda de publicidade positiva.
“Havia todo tipo de alegações de saúde sendo feitas”, explica Markel. “Se você tivesse dor de estômago, se estivesse nervoso, se fosse letárgico, se precisasse de energia, se tivesse tuberculose, asma, todos os tipos de coisas; a cocaína curaria o que quer que fosse que você tivesse”.
Naquela época, as drogas não estavam presas atrás das paredes das farmácias. A cocaína era vendida em bebidas, pomadas, mesmo margarina. O produto mais popular era um vinho com cocaína desenvolvido por um químico francês. Na imagem no topo deste artigo era vendido como pastilhas para curar dor de dente em crianças.
Em Atlanta, um veterano da Guerra Civil chamado John Syth Pemberton criou um vinho parecido. Viciado em morfina depois de sofrer ferimentos de guerra, John estava interessado na cocaína como um tratamento para o vício da morfina.
Ele também era um grande homem de negócios. Quando a cidade em que vivia proibiu a venda de álcool, ele inventou uma versão doce, não alcoólica: a Coca-Cola.
Na mesma época, em Viena, a saúde do próprio Freud estava se deteriorando devido ao uso de cocaína. Ele sofreu uma arritmia cardíaca grave e bloqueios nasais. Em uma carta de 1896, confessou seu vício e jurou parar.
Freud talvez não tenha sido realmente viciado, mas não estava sozinho no crescimento do cuidado com a droga “milagrosa”.
Markel conta que no início dos anos 1890, a literatura médica era cheia de relatos de pessoas que usavam muita cocaína e tinham se tornado viciadas. O cirurgião Halsted era uma delas (o que não o impediu de ser brilhante em sua profissão).
Sendo assim, os anúncios sumiram. Em 1903, não havia mais cocaína na Coca-Cola. Em 1914, a droga já era vista como algo indesejável e, muitas vezes, ligada a estereótipos ruins de pessoas (ou até mesmo malucos).
Um artigo infame do jornal americano The New York Times, escrito pelo médico Edward Huntington Williams, alertou para um novo perigo da cocaína: demônios. Williams descreveu um chefe de polícia que alegou que sua munição teve pouco efeito sobre esses usuários de drogas e muitas unidades policiais optaram por utilizar armas mais potentes.
Mais tarde, em 1914, o Congresso americano aprovou a Lei de Narcóticos Harrison, proibindo o uso não médico da cocaína, bem como de outras drogas, como a maconha. Havia começado a longa carreira da cocaína como uma fora da lei.
Uma vez proibida, o uso da cocaína caiu, embora Markel conte que houve um pequeno aumento durante a proibição.
Até a década de 1970, no entanto, as histórias de criminosos e viciados foram largamente esquecidas. Com o esquecimento, houve uma explosão de uso que superaria à ocorrida um século antes.
Novamente, começou com a elite. “Para ser um usuário de cocaína em 1979, tinha que ser rico, moderno e elegante”, conta Mark Kleiman, professor de política pública. As pessoas não estavam preocupadas com as desvantagens – o que, todos sabemos hoje, foi um grande erro.
A gota d’água para muitos foi a morte de Len Bias em 1986, ex-jogador de basquete, que morreu de ataque cardíaco depois de uma noite de festa e cocaína com amigos.
Os legisladores reagiram com uma ferocidade que atingiu os usuários mais pobres e não brancos. Em 1986 e novamente em 1988, o Congresso americano aprovou leis de condenação obrigatória que levaram a uma explosão na população carcerária dos EUA.
Estudos apontam que, desde esse pico, em meados dos anos 80, o número de usuários de cocaína caiu pela metade. Hoje, o uso de cocaína é dominado por viciados (estima-se, nos EUA, que 50% a 60% de toda a cocaína sejam consumidas por pessoas que foram presas no ano passado).
A cocaína tem sido elogiada e amaldiçoada, não uma só vez, mas em dois ciclos frenéticos, com um século de distância.
E o que é mais incrível: as drogas sempre mostraram seu poder de afetar totalmente a percepção humana. Freud nunca reconheceu o papel da cocaína em seus males físicos, assim como os usuários de drogas sempre procuram desculpas ou benefícios para seus vícios. “É incrível o que as pessoas fazem para negar os perigos das coisas que tendem a gostar”, argumenta Markel.
Fonte Hypescience