Médicos estão cada vez mais preocupados com a crescente resistência bacteriana a antibióticos, alimentada pelo uso de drogas substitutas e menos eficazes, quando não há penicilina disponível
A penicilina já foi considerada um remédio milagroso, mas hoje está escassa em todo o mundo, já que poucas empresas ainda a fabricam. Uma dose de benzatina penicilina, uma das formulações mais antigas do antibiótico, consegue curar os primeiros estágios da sífilis, doença mortal que assola a humanidade há mais de 500 anos e está crescendo novamente. Os laboratórios que fabricam o remédio, além de serem poucos, também produzem pouco dele, pois o medicamento não tem patente, gera pouco lucro e não há muitos dados sobre demanda.
Com a escassez global do remédio, médicos usam medicamentos substitutos, como a azitromicina, antibiótico cada vez mais ineficaz contra determinadas cepas da bactéria da sífilis. Mutações genéticas que tornaram a sífilis resistente a uma família de antibióticos chamada macrólidos, que inclui a eritromicina e a azitromicina, vêm sendo documentadas em todo o mundo nas últimas décadas, da China aos EUA. Na América Latina, há evidências de bactérias modificadas de sífilis na Argentina.
Uma das razões do surgimento da sífilis resistente é o uso extenso desses remédios para tratar a infecção no passado, revelam pesquisadores da Universidade de Zurique, autores de um artigo sobre as cepas resistentes da doença, publicado em 2016. A penicilina benzatina é o remédio de primeira linha contra a sífilis, mas macrólidos são usados quando não há penicilina ou em casos de alergia. Embora a resistência a antibióticos seja um processo natural, a escassez de medicamentos de primeira linha pode aumentar o risco de as bactérias se tornarem resistentes a antibióticos.
Um relatório recente encomendado pelo governo britânico estimou que 700 mil pessoas morrem anualmente devido à resistência a medicamentos. O texto alerta que, se o problema não for atacado agora, bactérias resistentes podem causar a morte de até 10 milhões de pessoas por ano até 2050, com um prejuízo de até US$ 100 trilhões para a economia mundial.
Escassez mundial
Nos últimos três anos, pessoas de pelo menos 18 países, incluindo África do Sul, EUA, Canadá, Portugal, França e Brasil, vêm enfrentando uma escassez de penicilina benzatina, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Com a produção restrita a apenas algumas poucas empresas no mundo, os países não conseguem um fornecimento adequado do medicamento que transformou a medicina moderna há 76 anos. Nos EUA, a escassez de penicilina benzatina, que já dura um ano, dificulta o tratamento da sífilis, crescente no país. A Pfizer, única fornecedora do medicamento, não tem conseguido atender à demanda americana, devido a “atrasos de manufatura” em uma de suas fábricas.
No Brasil, a falta de penicilina benzatina que teve início em 2014 foi acompanhada de um surto de sífilis, que também causa malformações graves em bebês. O antibiótico é o único capaz de matar a bactéria da sífilis no feto; outros antibióticos, como a azitromicina, a ceftriaxona e a doxiciclina, não conseguem tratar a infecção no bebê. Além disso, remédios como a ceftriaxona custam o dobro da penicilina.
“A penicilina benzatina é a primeira e única opção para tratar a sífilis na gestação e a neurosífilis. Sem ela, os pacientes ficam em situação difícil”, diz o infectologista Jorge Senise, da Universidade Federal de São Paulo. Se não tratada, a sífilis na gravidez pode deixar o recém-nascido cego, surdo ou com malformações ósseas. A doença também é ligada a alto número de abortos espontâneos e mortalidade infantil.
A escassez de penicilina impacta também os hospitais, porque os bebês que nascem com a doença precisam de internação hospitalar mínima de dez dias. “Isso gera custos altíssimos. E às vezes nem temos o medicamento certo para tratá-los”, diz a médica Luciane Cerqueira, do Hospital Universitário Pedro Ernesto, do Rio de Janeiro.
A moradora de Recife Débora S. M., que pediu para não ter seu nome completo revelado, deu à luz em fevereiro um bebê com neurossífilis, quando a bactéria da sífilis infecta o cérebro e o sistema nervoso central. Mãe e filho poderiam ter sido tratados com uma única injeção de penicilina benzatina, mas Débora passou a gravidez sem fazer exames de pré-natal. Ela foi várias vezes ao posto de saúde local, mas não havia médicos para atendê-la nem remédios para tratá-la.
Foi apenas no parto que Débora descobriu que estavam infectados. “Fiquei triste porque meu filho não nasceu com saúde”, diz. Após dez dias de tratamento na maternidade, o bebê teve alta, mas precisará de acompanhamento médico pelos próximos 18 meses. Só ao fim desse período os médicos poderão avaliar se o bebê ficou com sequelas causadas pela doença.
Razões
A falta de penicilina tem várias causas. Uma delas é a dependência de países a um pequeno número de fabricantes globais. Apenas quatro empresas no mundo produzem o ingrediente ativo do antibiótico, e elas mantêm a produção de penicilina em níveis baixos, porque o medicamento é pouco lucrativo. A penicilina é usada para tratar doenças letais, mas esquecidas, como a sífilis e a cardiopatia reumática crônica, que afetam países pobres com recursos limitados para identificar a abrangência dessas enfermidades em seu território.
“Há uma falha do mercado no setor da penicilina: existe uma demanda, mas ela vem dos pobres”, diz o cardiologista Ganesan Karthikeyan, do Instituto All India de Ciências Médicas, em Nova Déli, Índia. A Índia tem o maior número de mortes decorrentes da cardiopatia reumática crônica no mundo, com 111 mil casos fatais em 2015, segundo a OMS. Apesar disso, o abastecimento de penicilina, o único remédio capaz de frear a doença, tem sido instável no país. Pacientes muitas vezes não conseguem comprar o medicamento, relata Karthikeyan.
Há ainda uma questão produtiva. Em busca de menores custos, as empresas farmacêuticas fragmentaram a produção da penicilina e de outros medicamentos baratos. Os laboratórios compram o ingrediente farmacêutico ativo de outras empresas, a maioria localizada na China e na Índia, e formulam o medicamento final. Porém, tal fragmentação torna a cadeia frágil e deixa o abastecimento global da penicilina exposto a flutuações.
“Se um fabricante do ingrediente farmacêutico ativo sai do mercado, isso afeta as empresas que produzem o remédio final, o que pode gerar atrasos na produção e afetar a disponibilidade mundial do medicamento”, diz Maggie Savage, da equipe de novas oportunidades de mercado da Clinton Health Access Initiative (Iniciativa Clinton de Acesso à Saúde), que no ano passado fez um estudo sobre a disponibilidade global da penicilina benzatina. A especialista destaca ainda que nos últimos dez anos pelo menos cinco empresas abandonaram o mercado global de penicilina em busca de remédios mais rentáveis.
“A penicilina não dá dinheiro. Por isso as empresas não querem produzi-la”, diz o médico Amit Sengupta, de Nova Déli, coordenador global da rede People’s Health Movement (Movimento de Saúde Popular). “Havia um grande número fabricantes de penicilina na época em que ela era o medicamento mais poderoso do mundo, mas agora ela virou um mercado de nicho”. Um estudo de 2011 da London School of Economics estimou que o valor líquido de antibióticos injetáveis é de US$100 milhões, enquanto a previsão para medicamentos para tratar desordens musculoesqueléticos, como a artrite, passa de US$1 bilhão.
Milhões de pessoas em todo o mundo dependem desse “mercado de nicho”. Cerca de 33 milhões de pessoas sofrem da cardiopatia reumática crônica e precisam de injeções mensais de penicilina para evitar a morte, enquanto a OMS estima que uma dose única de penicilina benzatina por paciente poderia ter salvado mais de 53 mil bebês em 30 países que morreram de sífilis contraída no útero em 2012. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, apenas nove antibióticos novos foram desenvolvidos e aprovados nos EUA entre 2005 e 2014, um terço do número de drogas aprovadas na década de 1980.
“Precisamos de antibióticos novos, mas também precisamos preservar os que já existem, porque eles podem nos salvar agora”, diz a professora Céline Pulcini, do Centro Hospitalar Regional da Universidade de Nancy, que coordenou um estudo em 2015 sobre o desabastecimento de antibióticos antigos em 39 países. “Resolver esse problema precisa ser uma das maiores prioridades de qualquer governo”, afirma.