Bebida, antes malvista pela medicina, pode favorecer o cérebro, o sistema digestivo e até o coração
Desde a descoberta milenar desse grão acessível e com poder estimulante, o café se tornou um produto básico na mesa dos brasileiros e uma das bebidas mais consumidas no mundo. Coado em casa, quentinho ou gelado nas cafeterias gourmet, para alguns, o café virou uma necessidade para começar o dia com disposição e, para outros, um motivo para se reunir. Com toda essa popularidade, uma dúvida permanece na mente de muita gente: o café faz bem à saúde?
Especialmente devido à composição com cafeína, a bebida nem sempre foi associada a um estilo de vida saudável. A maior parte dessa reputação foi construída com base em pesquisas publicadas nos anos 1970 e 1980, que associaram o consumo de café a riscos maiores de doenças cardíacas e câncer — mas sem que outros hábitos dos participantes, como dieta, uso de álcool ou tabagismo, fossem considerados. Atualmente, quanto mais a ciência investiga as propriedades e os efeitos do café, mais longe a bebida fica dessa imagem negativa.
O produto é rico em antioxidantes, ajuda a evitar o diabetes e, de acordo com recentes descobertas realizadas por pesquisadores brasileiros, não seria contraindicado sequer para quem sofre de doenças cardíacas. Além disso, é um aliado da performance durante o treino para quem pratica atividades físicas.
— As pesquisas científicas com a cafeína começaram há mais de 20 anos tentando provar que o café é um vilão. Os dados epidemiológicos e as pesquisas de longa duração mostram que, na verdade, não se tem comprovações de que faria mal à saúde. Pelo contrário, há muitos benefícios — explica Marcelo Cossenza, pesquisador associado da Unidade de Pesquisa Café e Cérebro do Instituto D'Or, do Rio de Janeiro.
Um vilão para o coração?
Na década de 1990, pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer (NCI, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, iniciaram um acompanhamento com cerca de 400 mil homens e mulheres entre 50 e 71 anos. No artigo publicado no The New England Journal of Medicine, em 2012, com os resultados de mais de 13 anos de pesquisa, os cientistas mostraram que o risco de mortalidade entre os bebedores de café era até 10% menor do que o dos participantes que não consumiam a bebida.
"Uma considerável atenção foi dada à possibilidade de que o café pode aumentar o risco de doenças cardíacas", dizia um dos trechos iniciais do artigo. Mas o comprovado pela pesquisa foi justamente o contrário: quem bebeu café ao longo dos anos tinha menores riscos de morrer por doenças cardíacas, respiratórias, diabetes e infecções.
Em 2015, foi publicado no periódico científico Circulation um estudo liderado por um pesquisador do Departamento de Nutrição da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, com base em dados coletados de 200 mil pessoas. Os participantes que bebiam até cinco xícaras grandes de café por dia apresentaram menos risco de morrer de doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2. Os resultados foram semelhantes para os adeptos da bebida descafeinada, o que sugere que não seria apenas a cafeína a detentora dos benefícios, mas também outros agentes químicos presentes no grão da planta.
Estudos feitos no Brasil também questionam o status de vilão do grão em relação a doenças cardíacas. Uma equipe da unidade Café e Coração do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) conduziu uma pesquisa com pacientes que estavam sob acompanhamento ambulatorial após sofrerem infartos ou serem diagnosticados com problemas de angina. Para os testes, os participantes consumiram de três a quatro xícaras de café ao longo de quatro semanas, e, em períodos distintos da pesquisa, utilizaram grãos com torras diferentes para preparar a bebida.
Depois de semanas ingerindo cerca de 400ml de café por dia, eles foram submetidos a exames que apontaram que não houve aumento na pressão arterial e nem arritmia cardíaca. Ainda na pesquisa, verificou-se que a torra mais escura seria a mais benéfica.
— Dizer que um paciente não pode tomar café não é verdade. Os médicos sempre proíbem café para tudo. O problema surge para quem nunca toma e ingere uma dose. Nesse caso, a pessoa pode ter, sim, taquicardia e a pressão vir a aumentar naquele momento, mas se a ingestão da bebida se tornar um hábito, isso desaparece — completa o cardiologista Luiz Antonio Machado César, diretor do Centro de Pesquisa Café e Coração.
FIQUE ATENTO:
NA GESTAÇÃO
Gestantes devem evitar a bebida, assim como outras substâncias estimulantes.
ANTES DE DORMIR
O café leva de seis a nove horas para sair do organismo. Considere o seu horário de dormir antes de tomar a última xícara do dia. Como uma substância com alto poder estimulante, pode prejudicar o sono.
AO ACORDAR
"Só acordo com café." Se você se identifica com essa afirmação, fique atento. Quando altas doses de cafeína são necessárias para seguir o dia com energia, pode haver algo de errado. A rotina de beber mais de duas xícaras por dia pode causar sintomas de abstinência quando se interrompe o consumo.
VÁ COM CALMA
Ainda que as pesquisas apontem benefícios trazidos pelo café, se você tem problemas cardíacos ou pressão alta, converse com seu médico sobre o consumo da bebida.
Fonte: nutricionista Julia Melnick
Os efeitos no cérebro
No Rio de Janeiro, a unidade Café e Cérebro do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino investiga desde 2012 a neurociência por trás do café. As pesquisas buscam entender melhor os efeitos dos componentes voláteis — as substâncias presentes no aroma — e os solúveis — que estão na bebida. A equipe de pesquisadores ainda tem muitas perguntas, mas já apresenta algumas respostas. Até mesmo o aspecto social da bebida é objeto de estudo. Basta uma olhada nas cafeterias de uma cidade para comprovar empiricamente: o café é um bom motivo para juntar as pessoas.
— As pessoas se reúnem para fazer isso, é uma experiência social. Com a simples percepção do aroma, já surge vontade de se encontrar. Então, queremos saber se existe uma base científica. Culturalmente, é um fenômeno real, mas o que acontece no cérebro? Pelos nossos resultados, vimos que a experiência olfativa do café dispara as regiões do cérebro relacionadas com o prazer, igual a sexo ou algumas drogas — explica o pesquisador da unidade Marcelo Cossenza.
No cérebro, os ácidos clorogênicos e a cafeína, presentes no café, ajudam no desenvolvimento e no processo de desinflamação. Essas propriedades são benéficas nos casos de doenças degenerativas como Parkinson ou Alzheimer, quando há um processo inflamatório no órgão.
Um recente estudo americano apontou que os ácidos clorogênicos são mais antioxidantes que a própria vitamina C. De acordo com Cossenza, eles ajudam a desativar a microglia, uma célula de defesa do cérebro que, quando ativa por muito tempo, leva a processos degenerativos.
— Em todas as doenças degenerativas existe uma ativação excessiva da microglia, e os clorogênicos são capazes de diminuir essa ação que contribui para o aumento de lesões — explica Cossenza.
Além disso, o simples cheirinho de café faz bem. A bebida é campeã no número de compostos voláteis — moléculas que estão presentes no cheiro da bebida. Destas, 30 substâncias estão relacionadas ao estímulo de áreas do nosso sistema de recompensa, ou seja, as regiões de prazer do cérebro. Essa seria uma descoberta importante para o desenvolvimento de novos medicamentos para tratamento de enfermidades psíquicas, como explica Silvia Siag Oigman, doutora em Química pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora da unidade Café e Cérebro.
— Uma vez que você ativa o sistema de recompensa e entende quais são as áreas relacionadas à emoção e ao prazer, podemos trabalhar com essas moléculas na área de medicina emocional para a produção de novos remédios.
Bom para o aparelho digestivo
Para a saúde do aparelho digestivo, as notícias também são positivas. O gastroenterologista do Hospital Moinhos de Ventos Claudio Rolim Teixeira ressalta os benefícios da bebida para o fígado. O café funciona como um aditivo, melhorando o desempenho do metabolismo hepático, ou seja, no funcionamento do órgão na sintetização de proteínas e eliminação de toxinas. As propriedades bioquímicas presentes no café também se mostraram como um antídoto para o desenvolvimento de condições como a fibrose hepática, estágio inicial da cirrose, quando o fígado vai perdendo sua capacidade.
Uma revisão de todos os estudos conduzidos sobre a relação entre o consumo de café e as doenças hepáticas foi feita por pesquisadores de universidades chinesas e publicada em novembro de 2015. Foram analisadas 16 pesquisas que envolviam 3.034 consumidores da bebida e mais de 132 mil pessoas que não bebiam café.
A pesquisa concluiu que havia uma redução significativa de 50% do risco de câncer no fígado entre quem consumia quantidades mais altas de café em comparação a quem consumia pouco ou nada. É claro, os próprios pesquisadores afirmam que o câncer é uma doença multifatorial, mas que a cafeína, o cafestol, o kahweol e os ácidos clorogênicos, substâncias presentes no café, poderiam ter um papel fundamental para proteger o fígado.
Rolim, porém, diz que ainda é controversa a relação inversa entre café e câncer de fígado:
— Minha posição é de que ainda faltam estudos bem delineados que possam embasar essa conclusão.
Não causa gastrite, mas pode piorar os sintomas
O café pode não ser a causa de gastrite, úlceras ou refluxo, mas pode piorar os sintomas que causam incômodo. A cafeína na bebida estimula ainda mais a secreção ácida, contribuindo para o problema. Quem já sofre com disfunções no estômago, segundo Rolim, deve moderar o uso, mas, de vez em quando, uma xícara não seria contraindicada.
A recomendação é consultar um médico ao sentir os primeiros sintomas e evitar cigarro e outras bebidas cafeinadas.
Pesquisadores divididos
Os resultados a favor do café encontrados recentemente não tornam a bebida uma unanimidade. Entre a comunidade científica, a questão ainda divide os pesquisadores. Prova disso é o comunicado da Associação Americana do Coração, que não escolhe lados nesse conflito de anos de pesquisa. Em um texto publicado no site oficial, a entidade cita os efeitos metabólicos da cafeína, entre eles, o estímulo ao sistema nervoso central e o impacto nos rins, já que o consumo aumenta a produção de urina, podendo causar desidratação.
O órgão americano pondera que há estudos que se contradizem sobre a ligação entre cafeína, consumo de café e doenças cardíacas coronarianas, mas afirma que uma a duas xícaras por dia não traria riscos à saúde. O texto também faz menção aos sintomas de abstinência, como fadiga, dor de cabeça e até mesmo depressão, que podem surgir entre 12 e 24 horas depois da última dose de cafeína ingerida. O mal-estar causado pela falta da substância poderia levar entre 24 e 48 horas para desaparecer, alerta a associação.
Quantas xícaras?
Moderação deve ser a palavra chave ao beber café, como explica a médica nutróloga Jaqueline Coelho. A recomendação é de que o consumo diário não ultrapasse 400ml, que devem ser ingeridos ao longo do dia e nunca de uma vez só. Os efeitos da cafeína variam de acordo com as características do organismo de cada um. Por isso, é importante avaliar a dose diária que não causa desconforto, agitação excessiva ou taquicardia.
— O café não vicia, mas como acelera o metabolismo, a pessoa pode sentir uma necessidade de que o organismo funcione de modo mais rápido quando não ingere a cafeína. Mas a bebida pode, sim, fazer parte de uma dieta balanceada e saudável — diz a médica.
Zero Hora