Governos locais tentam limitar acesso da indústria farmacêutica a médicos da rede pública – e a indústria reage. Um médico conta por que essa relação merece atenção
Havia pouco mais de um ano que o recifense Rodrigo Lima terminara o curso de medicina. Atendia na pequena Gravatá, a 80 quilômetros do Recife, e adotara a prática de distribuir receitas de um medicamento. Era uma droga contra tosse – um incômodo, mas que pode denunciar um problema a ser tratado ou ajudar a expelir secreções de que o corpo precisa se livrar. Em muitos casos, o ideal é deixá-la seguir seu curso. Mas vários pacientes de Lima não contavam com essa opção.
Ele ganhara amostras do medicamento de um representante de vendas de uma empresa que acabara de lançar a droga. Como eram gratuitas, achou por bem distribuí-las. Depois que as amostras acabaram, passou a receitar. “Os pacientes gostaram e, meio no modo automático, passei a receitar para gente que, talvez, nem precisasse”, diz. Lima era médico de uma unidade pública de saúde. Os pacientes, muitos deles pobres, tinham de comprar a droga, mais cara que outras semelhantes. Ela não fazia parte das medicações disponíveis na rede pública.
Em 2003, Lima era recém-formado. Tinha pouco tempo na carreira, mas suficiente para que propagandistas da indústria farmacêutica, como aquele que o apresentou ao medicamento contra a tosse, fossem seus velhos conhecidos. Desde os tempos da faculdade, no Recife, ele os encontrava dentro dos hospitais onde fazia estágio. Em uma das instituições, filantrópica, cada ambulatório tinha um armário carregado de amostras grátis. Os médicos se sentiam bem de poder dar aos pacientes com menos recursos alguns medicamentos. As amostras não ficavam só nos hospitais. Os profissionais, em treinamento ou já formados, também ganhavam. O então estudante Lima levava para casa sacolas carregadas.
“Os parentes me ligavam para pedir remédio, e eu, ainda na faculdade, me sentia importante.” Estudantes de medicina não podem prescrever medicações, mas as informações dadas pelos representantes ajudavam Lima a saber como indicar. “É com essas informações que os médicos jovens formam seu arsenal terapêutico e se habituam com as marcas que passarão a usar”, diz. Havia também os eventos, promovidos por empresas farmacêuticas em churrascarias badaladas do Recife. “Como estudante, ia feliz da vida com a boca-livre.”
Havia primeiro uma apresentação das novidades: lançamentos, estudos para reforçar ou ampliar a indicação de drogas. Depois, o jantar. Farto.
Hoje, Lima, de 39 anos, atende como médico de família em uma unidade pública de saúde nos arredores de Brasília. Ainda observa a relação estreita entre médicos e representantes da indústria farmacêutica. Mas sabe que, ao menos, no Distrito Federal esse relacionamento anda complicado. Uma lei que entrou em vigor em junho proíbe a presença de propagandistas em unidades públicas de saúde no horário de atendimento ao público. “A lei nos marginalizou”, afirma o propagandista Caio Santos, de 48 anos.
Há 22 anos, Santos visita hospitais da rede pública da região para convencer os profissionais de saúde de que os medicamentos da empresa que representa são melhores que os da concorrência. Um trabalho que exige conhecimento técnico e boa dose de habilidade social. Há seis meses, os crachás que autorizavam sua entrada em 16 hospitais públicos do Distrito Federal perderam a validade. Agora, Santos só consegue entrar em cinco deles, autorizado pela administração da instituição, mas precisa ser anunciado. Reclama de ter perdido o acesso direto aos médicos – assim como outros 450 propagandistas da indústria farmacêutica na região. “A mudança torna inviável levarmos as discussões científicas para os médicos”, diz. “O jeitinho brasileiro é chamar o médico para sair do hospital, marcar reunião no consultório particular.”
O autor da lei, o deputado distrital Juarezão (PSB), afirma que quis garantir o atendimento aos pacientes: “A própria comunidade pediu. O representante entra na sala e os pacientes ficam do lado de fora esperando. Atrapalha muito”. Juarezão pode ter mirado em agradar a sua base eleitoral. Ele já trabalhou na área de saúde em Brazlândia, uma região administrativa do Distrito Federal, cumprindo atividades de gestão em uma unidade pública de saúde. Mas, com a medida de apelo popular, entrou num debate nebuloso: como os médicos escolhem receitar um medicamento em vez de outro. Parece uma questão técnica, mas sofre influências variadas – até do grau de simpatia do médico pelo representante.
Os propagandistas ocupam papel central na estratégia de marketing da indústria farmacêutica. Conectam o setor aos médicos. Levam informações sobre os produtos da empresa a profissionais de saúde até as cidades mais afastadas de grandes centros, em uma conversa olho no olho, permeada pelas melhores táticas de venda e pela distribuição de amostras grátis, como as que Lima encontrava nos hospitais e distribuía para a família. Mas a relação se encontra sob forte escrutínio, principalmente de grupos acadêmicos. “A interação dos médicos com a indústria gera conflito de interesse”, diz Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “O objetivo principal, que é o melhor tratamento para o paciente, é alterado por um secundário, da indústria: ganhar dinheiro.”
A lei do Distrito Federal não é uma iniciativa isolada (leia no quadro abaixo). No Brasil, pelo menos outras três cidades tentaram implantar medidas semelhantes – não sem polêmica e resistência. Em Goiânia, em 2014, a então vereadora Cida Garcêz (SDD) colocou em pauta um Projeto de Lei que determinava que os representantes de empresas farmacêuticas deveriam marcar um horário para falar com o médico antes ou depois das consultas.
O projeto não foi aprovado. “Na época, o sindicato dos propagandistas de Goiás procurou os vereadores e o projeto foi barrado”, afirma Cida. Em Campinas, São Paulo, uma portaria da Secretaria Municipal de Saúde proíbe desde 2016, salvo “com a expressa autorização” do secretário, a visita de representantes em todas as unidades da rede municipal. Há tentativas de revertê-la. Um Projeto de Lei de 2015, para garantir o acesso dos propagandistas, foi aprovado em uma primeira votação – agora, aguarda a segunda. Não há previsão de quando isso deve ocorrer. Em Ribeirão Preto, São Paulo, até dezembro do ano passado, vigorou um decreto que proibiu a presença de representantes de laboratórios farmacêuticos e similares nas unidades de saúde do município.
Um projeto de decreto legislativo do vereador Luciano Mega (PDT) revogou o trecho sobre os propagandistas. Mega, médico pediatra, diz que a motivação surgiu a partir de conversas com os representantes que visitavam seu consultório. “Achei a proibição muito injusta. Trabalhei para revogá-la.” Em setembro, uma liminar obtida pelo prefeito derrubou o decreto a favor da presença de representantes. Em nota, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) afirma que a proibição das visitas pode prejudicar o atendimento a pacientes: “Esse contato é realizado única e exclusivamente com o objetivo de promover a atualização científica do profissional de saúde”.