Catadora já precisou tomar coquetel para evitar infecção por HIV. Município do Rio não deve atingir a meta de reciclagem definida em plano
A falta de políticas públicas para cumprir a Lei Nacional de Resíduos Sólidos – que procura organizar a forma como o país trata o lixo, ao incentivar reciclagem e sustentabilidade –, tem afetado diretamente a vida dos catadores que deixaram as rampas dos lixões desativados no Rio de Janeiro e ainda tentam sobreviver da coleta seletiva. Além da falta de material para trabalhar com reciclagem, catadores de centrais apoiadas pela prefeitura do Rio, em convênio com o BNDES, correm riscos com o despejo de lixo hospitalar e produto químico nos pátios das centrais.
Segundo Evelyn Marcele de Brito, gestora da Coop Futuro, que atua na Central de Triagem de Irajá, há cerca de quatro meses ela precisou tomar o coquetel do dia seguinte para evitar a infecção pelo HIV após se espetar com uma seringa que estava misturada entre o material reciclado.
“É a realidade da cooperativa que eu passo hoje, com a minha mão espetada de seringa e a dos demais catadores que estão lá”, afirma Evelyn, garantindo que diariamente chegam diversos sacos com lixo hospitalar.
De acordo com a Comlurb, o resíduo químico foi uma ocorrência pontual que exigiu providências técnicas e ambientais imediatas e urgentes.
“Os resíduos estão em processo de análise e, paralelamente, foram adotadas medidas emergenciais no sentido de preservar a saúde dos catadores e garantir com segurança a continuidade dos trabalhos nessa área”, diz nota enviada ao G1.
De acordo com a lei, o lixo hospitalar deve ser devidamente condicionado em embalagens específicas e depositado em aterro sanitário através de sistema de coleta especial ou, dependendo da qualificação, até mesmo incinerados.
Contaminação coletiva
No meio de maio, catadores que trabalham na Central de Triagem de Bangu ficaram uma semana sem trabalhar por conta de um produto químico, ainda não identificado, que foi descarregado na central juntamente com o lixo destinado à reciclagem.
“Os trinta e seis catadores que estavam aqui começaram a passar muito mal. O material chegou no pátio dia 18 e só foi retirado dia 23. Todos tiveram contato com aquilo. Não sabemos se fomos contaminados com alguma coisa e com qual produto tivermos contato”, afirmou Eva Barbosa Alves de Souza, de 39 anos, que trabalhou durante 13 anos no Lixão de Gericinó, em Bangu, na Zona Oeste do Rio.
Em nota, a Comlurb novamente alegou se tratar de um fato isolado e disse que a companhia treina suas equipes para orientar a população que aderiu à coleta seletiva a qual tipo de material deve ser destinado à reciclagem.
“A Comlurb tinha que fazer um exame nos cooperados. Eu não sei qual tipo de doença posso ter levado para dentro da minha casa, para meus filhos e minha família”, disse Custódio Silva, de 55 anos, 17 deles trabalhando como catador em Gericinó.
De acordo com os trabalhadores, os principais sintomas após o contato foram náuseas, dor de cabeça, perda de voz, falta de ar e dormência na boca. Os catadores voltaram a trabalhar na Central de Triagem no dia 25 de maio.
Rio não deve atingir meta de 25% do lixo para a reciclagem
Após a publicação da Lei 12.305/10, que determinou o fechamento dos lixões e instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, as prefeituras foram obrigadas a definir metas de redução dos resíduos enterrados.
Inicialmente, o município do Rio definiu como meta aumentar a coleta seletiva para 25% até 2016. No entanto, atualmente a prefeitura encaminha para a reciclagem apenas 5% do lixo com potencial reciclável. Segundo a Comlurb, com a coleta seletiva praticada por empresas, pelo comércio e por grandes condomínios, estima-se que esse percentual chegue a 15% até o ano que vem e não atingirá a meta. De acordo com a Secretaria Estadual do Ambiente, somente 1,75% do lixo produzido nos 92 munícipios do Estado é encaminhado para a reciclagem.
Segundo o ambientalista Sérgio Ricardo, um dos convidados da Alerj para acompanhar as reuniões e visitas técnicas das CPI do Lixo, a coleta seletiva no Rio de Janeiro é quase inexistente.
“Só existe uma forma de favorecer a reciclagem, que é cobrar da prefeitura metas para reduzir o que é enterrado. O material com maior potencial para a reciclagem está sendo enterrado. Foi isso de 1976 a 2012 em Gramacho e está sendo agora em Seropédica”, afirmou o ambientalista, destacando que apesar da lei, 37 aterros continuam a operar no estado.
“Quase todo o lixo é enterrado no Rio. A quem interessa isso? As empresas que têm essas concessões. E se a gente observar, a CPI vai emitir no final um parecer sobre isso, essa administração está nas mãos de pouquíssimos. Essa é uma situação que está beneficiando poucas empresas, por períodos muito longos, concessões de 25 anos ou até mais. Isso precisa ser investigado com critério”, afirmou o deputado Gláucio Julianelli, que integra a CPI do Lixo da Alerj.
Ainda de acordo com o deputado, quanto mais recurso é empregado no enterramento do lixo, menos investimentos são feitos em outras áreas importantes. Apenas com o enterramento do lixo do município do Rio são gastos cerca de R$ 550 mil por dia.
Falta de equipamento e espaço inadequado para a coleta seletiva
Apesar do acordo firmado entre a Prefeitura do Rio e o BNDES em março de 2011, que prevê investimentos de R$ 50 milhões, apenas R$ 5.237.597,75 foram liberados até o momento. De seis centrais de reciclagem previstas para serem criadas com a verba, quatro anos após a assinatura do contrato, apenas a Central de Triagem de Irajá está em funcionamento. Inicialmente, a previsão era que todas as centrais estivessem em funcionamento até junho de 2016.
Os cooperados da central de Irajá dizem que, apesar do investimento, nem todas as máquinas estão operando e um caminhão que seria destinado à coleta seletiva nunca foi entregue aos catadores.
“É uma situação horrível, principalmente quando a gente sabe e tem a consciência de que foi investido muito dinheiro na coleta seletiva do Rio. Por que esse dinheiro não foi investido no catador? Estamos cansados. De nove máquinas, seis estão paradas. O desejo deles é que fracasse para eles justificarem o erro”, criticou Evelyn.
Já a Central de Triagem de Bangu, cujo primeiro prazo de entrega dado foi agosto de 2014, ainda não ficou pronta e os catadores utilizam precariamente um galpão cedido pela Comlurb ao lado da obra.
“Essa obra está parada desde o ano passado. Enquanto nosso galpão não fica pronto, estamos trabalhando aqui mesmo. Nós tínhamos o exemplo de Gramacho, pois eles receberam a indenização e no dia seguinte não tinham mais nada. No Termo de Ajuste de Conduta nós fizemos questão que constasse que a Comlurb teria que alugar um espaço para os catadores continuassem trabalhando”, ressaltou Custódio.
De acordo com a companhia, a empresa contratada para realização da obra da Central de Triagem de Bangu não cumpriu o prazo e foi multada e penalizada. A obra para finalizar a Central de Triagem de Bangu foi licitada em maio deste ano e a conclusão está prevista para outubro.
A Central de Triagem do Centro precisou ser revista devido ao planejamento urbanístico da região do Porto Maravilha, o local anteriormente definido não pôde mais ser utilizado. Foi definida uma área da Comlurb no Caju e o projeto para a implantação da terceira CT está sendo realizado. O projeto para as outras três centrais ainda não saiu do papel.
Salários baixos e número de trabalhadores reduzido
Com pouco material de qualidade, falta de maquinário e espaços improvisados, é difícil abrigar os catadores nas cooperativas. Segundo Evelin, em outubro do ano passado, 64 catadores trabalhavam na Central de Irajá, mas como não há matéria-prima para gerar fonte de renda para todos, o número caiu drasticamente.
“Hoje, eu tenho 25 cooperativados. O problema é a qualidade do material que vem. É muito rejeito. Até hoje, o máximo que consegui pagar foi R$ 880. Não recebemos material para 200 catadores trabalharem”, garantiu Evelyn. Quando a central de Irajá foi inaugurada em janeiro do ano passado, o prefeito Eduardo Paes afirmou que 200 postos de trabalho seriam criados e os catadores teriam renda de cerca de R$ 1.350.
Em Bangu, cerca de 36 catadores trabalham provisoriamente no galpão. Segundo o grupo, cada um consegue receber cerca de R$ 730 por mês. “Houve um tempo que a maior parte do material era rejeito. Mas brigamos, fomos lá na Comlurb e fizemos uma reunião. Hoje, o volume que chega vem com qualidade melhor, mas ainda não é o suficiente para mais que 36 pessoas. Não temos material suficiente, nem espaço adequado”, afirmou Eva.
G1