Processo de doação de órgãos ainda é um assunto delicado para famílias nos EUA
Logo ao final do corredor, no quarto 356, Curtis Kelly estava deitado, coberto até o peito por uma manta branca, respirando com a ajuda de aparelhos. Um neurologista do Hospital Fairview Southdale havia declarado a sua morte cerebral quase seis horas antes.
A vasta família de Kelly – um filho, três irmãos, uma cunhada, sua namorada e a filha de uma ex-namorada – estavam reunidos em uma pequena sala de reuniões na unidade de terapia intensiva, de modo que John P. LeMay pudesse pedir permissão para coletar seus órgãos e tecidos.
Com a lista de verificação na mão, LeMay, coordenador de apoio às famílias da LifeSource, a organização responsável pela coleta de órgãos para doação em Minnesota, contabilizava as partes do corpo de Kelly que poderiam restaurar a saúde de pacientes que sofrem há tanto tempo. Como não havia registro de que Kelly, de 46 anos, tivesse se registrado como doador, LeMay pediu ao filho de Kelly, de 18 anos, Kello Brown, que aprovasse cada uma dessas solicitações de "presentes anatômicos".
A expectativa era de coletar o coração, os rins, o fígado e os pulmões de Kelly, explicou LeMay falando baixo, bem como intestinos, pâncreas, vasos sanguíneos e pele. É possível remover os ossos da bacia e da perna, disse, e a funerária pode inserir próteses para fazer com que o corpo pareça natural para ser apresentado no funeral.
No negócio complexo da coleta de órgãos para suprir uma demanda crescente, poucas tarefas são tão delicadas como as de LeMay. Dentro da região de três estados coberta pela LifeSource, ele e outros dois coordenadores de apoio às famílias devem intervir junto aos enlutados, em momentos comoventes, a fim de aproveitar ao máximo cada oportunidade de doação.
Seus filhos e irmãos sabiam que ele queria ser doador de órgãos, embora ele não tivesse registrado essa vontade em sua carteira de motorista, e trataram da possibilidade com o médico. LeMay esteve presente para orientá-los em relação ao processo.
Outros casos são mais complicados. Se o falecido não estiver registrado como doador, os parentes próximos são consultados quanto à decisão tomada, e o índice de negação de consentimento das famílias na região coberta pela LifeSource é de 30%, disse Meg Rogers, diretora de coleta da agência.
Elas podem expressar essa negação por razões morais ou religiosas, ou simplesmente por não terem certeza quanto ao desejo de seus entes queridos. O esgotamento e a dor que vivenciam podem drenar as forças que teriam para refletir sobre essa escolha.
O país está dividido em 58 regiões de doação, sendo que cada uma delas é servida por uma organização sem fins lucrativos de coleta de órgãos como a LifeSource, que cobre Minnesota, Dakota do Sul e Dakota do Norte. Os orçamentos das agências – 32 milhões no caso da LifeSource – são financiados por contribuições filantrópicas e encargos cobrados dos hospitais que realizam transplantes. Os hospitais, em seguida, são reembolsados pelas seguradoras dos transplantados, principalmente a Medicare.
Uma simples operação matemática indica que os 135 funcionários da LifeSource devem tratar todas as oportunidades de doação como preciosas. Cerca de 20 mil pessoas morreram em hospitais na região coberta pela organização no ano passado, mas só 1.900 tinham órgãos em funcionamento após a morte cerebral, casos em que a doação era viável, disse Rogers.
Na região coberta pela LifeSource, 61% dos adultos se apresentam como doadores, índice acima da média nacional, de 43%. Mesmo assim, por conta de problemas de saúde ou da falta de consentimento das famílias, apenas 160 doaram órgãos em 2011, viabilizando 526 transplantes, enquanto 495 doadores forneceram tecidos. Há 3.300 pessoas esperando por órgãos na região.
Depois que os documentos da doação foram assinados, LeMay convidou os membros da família de Kelly a também serem doadores. Todos concordaram que Kelly era uma figura e tanto.
Um dia depois, na sala de cirurgia, outro funcionário da LifeSource pediu um momento de silêncio em homenagem a Kelly antes de os cirurgiões começarem seu trabalho. Ao longo dos próximos dias, pacientes diferentes receberam o fígado e rim direito de Kelly.
O que recebeu o rim esperava pelo órgão há nove anos. O rim esquerdo, parcialmente danificado por conta do bloqueio de fluxo sanguíneo, foi oferecido a pacientes de todo o país, mas não foi utilizado, disse uma porta-voz da LifeSource.
LeMay disse que o fato de trabalhar tão perto da morte, que tantas vezes ocorre súbita e acidentalmente, fez com que ele passasse a abraçar os filhos pequenos com um pouco mais de força ao voltar para casa. Sua esposa, contou ele, sabe que tem que lhe dar um pouco de espaço depois de um caso particularmente intenso.
Ele disse que se sente profundamente gratificado quando as famílias dos doadores, trabalhando junto à equipe de coleta de órgãos, decidem apostar que uma morte pode também gerar vida.
"Isso me fez não ter medo da morte", disse LeMay. "Seja pela lembrança de entes queridos ou pelo legado da doação – o dom da vida de uma pessoa transferido para outra – existe, sim, vida após a morte."
The New York Times News Service/Syndicate
Fonte R7