O uso exagerado de antibióticos causou o surgimento das chamadas superbactérias, apontam especialistas
Rio - O gesto era quase automático entre bacteriologistas. Ao perceber que as placas com culturas se apresentavam com mofo, simplesmente as descartavam. Mas um bendito acaso levou o biólogo escocês Alexander Fleming a esquecer lâminas com micro-organismos em seu laboratório londrino.
Quando retornou, o cientista viu que uma cultura de estafilococos tinha sido contaminada por bolor, e que, ao redor destas colônias, não havia mais bactérias. Começava ali a descoberta do primeiro antibiótico, a penicilina, responsável por salvar incontáveis vidas ao redor do mundo desde então.
Ora, se Fleming tivesse procedido como sempre, uma “grande e humanitária descoberta” teria sido postergada “indefinitivamente”, conforme publicou O GLOBO no dia 14 de julho de 1944, numa reportagem com os detalhes da façanha, que rendeu ao cientista o Nobel de Medicina de 1945.
“É deveras admirável que, em minutos apenas, um germe, caído não se sabe donde, em um lugar onde era o menos desejado, viesse a apresentar tão extraordinários resultados”, disse o escocês, segundo o depoimento publicado na edição do jornal de 71 anos atrás. A distração que levou à grande revelação aconteceu em 1928, só que mais de dez anos foram necessários até o medicamento chegar ao mercado em larga escala, no início dos anos 40, e revolucionar a indústria de remédios. A partir de então, durante algumas das muitas entrevistas que concedeu sobre o assunto, Fleming destacou que as pessoas não deveriam abusar da penicilina, sob o risco de torná-la ineficaz. Hoje, décadas mais tarde, cientistas dão conta de que a humanidade não seguiu esse conselho.
O uso exagerado de antibióticos, derivados ou não da penicilina, causou o surgimento das chamadas superbactérias, micro-organismos resistentes a todas as drogas disponíveis no mercado que são uma das maiores ameaças ao futuro da espécie humana, segundo especialistas. No início do mês passado, um relatório britânico estimou que será preciso investir cerca de US$ 37 bilhões para criar uma nova geração de antibióticos capazes de parar o avanço das superbactérias. Elas podem, de acordo com o documento, matar no futuro cerca de 10 milhões de pessoas por ano. Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou a criação de um plano de ação para enfrentar o perigo.
O uso exagerado de antibióticos, derivados ou não da penicilina, causou o surgimento das chamadas superbactérias, micro-organismos resistentes a todas as drogas disponíveis no mercado que são uma das maiores ameaças ao futuro da espécie humana, segundo especialistas. No início do mês passado, um relatório britânico estimou que será preciso investir cerca de US$ 37 bilhões para criar uma nova geração de antibióticos capazes de parar o avanço das superbactérias. Elas podem, de acordo com o documento, matar no futuro cerca de 10 milhões de pessoas por ano. Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou a criação de um plano de ação para enfrentar o perigo.
Mas, décadas atrás, o problema era outro. Não havia armas químicas eficazes contra bactérias e outros micro-organismos. O fungo que apareceu nas placas de Fleming foi identificado como do gênero Penicilium, e daí o nome da substância. Fleming passou, então, a empregá-la em seu laboratório para selecionar bactérias e eliminar das culturas as espécies sensíveis a sua ação. Mas, dada a peculiaridade das características ambientais que levaram ao surgimento do bolor, só no início dos anos 40 os cientistas conseguiram produzir com fins terapêuticos e em escala industrial. Foi um momento oportuno.
— O mundo estava em plena Segunda Guerra. O antibiótico era, então, muito devotado para o tratamento dos feridos, pacientes que chegavam com algum fragmento de bala, de bomba, de explosivo, com amputação de membros — explica o infectologista Carlos Kiffer, pesquisador do Laboratório Especial de Microbiologia Clínica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). — Havia uma dificuldade de produção naquela época. O processo era lento e demorado, e as quantidades produzidas eram pequenas.
Por sua conhecida e revolucionária eficácia, a penicilina, e a linha de antibióticos desenvolvidos a partir dela, foram cada vez mais utilizados, até chegar ao que, hoje, cientistas ao redor do mundo chamam de exagero. A infectologista Marisa Gomes, do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), conta que, atualmente, médicos receitam antibióticos como a amoxicilina, por exemplo, para curar infecções simples ou mesmo se na dúvida sobre a causa da enfermidade. Além disso, antibióticos também estão presentes na agricultura e na pecuária.
— Com o uso indiscriminado dos antibióticos, as bactérias passam a apresentar resistência, e há necessidade de usar ainda mais antibióticos nos tratamentos — diz Marisa. — O resultado é que precisamos voltar a utilizar drogas que já tinham saído do mercado.
O alerta sobre esse perigo, exaltado por Fleming até mesmo em seu discurso no Nobel, também foi antecipado no Globo com um aviso do diretor do Serviço Nacional de Fiscalização do Exército de Medicina, Roberval Cordeiro de Férias. A matéria, do dia 7 de julho de 1944, tinha como título “Nem tudo pode ser curado pela penicilina”. Nela, ele frisou que é muito importante que “o público, e muito especialmente a classe médica, tenham conhecimento das indicações e contraindicações da penicilina, com o que se poupará tempo preciso, evitar-se-ão dispêndios inúteis e, sobretudo, decepções tão desagradáveis”.
O Globo