Paulo Marcelo Gehm Hoff começou cedo sua história na medicina. Aos 16 anos, começou a graduação na Universidade de Brasília (UnB).
Ao longo de sua trajetória acadêmica, chamou a atenção de muitos médicos e se tornou um dos maiores especialistas em oncologia – a especialidade que cuida do câncer – do mundo.
Aos 42 anos, o diretor do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) defende que o Brasil invista em pesquisas para combater a doença, torne esse processo menos burocrático e treine mais profissionais para compreender o câncer.
Em entrevista ao iG Saúde, o paranaense que tratou a presidente Dilma Housseff e o ex-vice-presidente José Alencar – morto na última terça – falou sobre os desafios que o País enfrenta para garantir tratamento de qualidade em todas as regiões. Para ele, é fundamental investir em diagnósticos mais precisos e precoces.
Hoff é professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e se divide entre ensino, pesquisa, atendimento de pacientes e coordenação dos serviços nos hospitais em que atua. Talvez por isso sua caminhada na profissão é surpreendente: escreveu 12 livros e soma 130 artigos científicos publicados, além de outros tantos capítulos escritos em obras médicas.
O especialista voltou ao Brasil há cinco anos, depois de trabalhar como professor e médico titular do M.D. Anderson em Houston, no Texas, Estados Unidos – o território pouco ocupado por estrangeiros é um dos principais hospitais de tratamento e pesquisas em câncer. Confira a entrevista:
O câncer é uma doença que ainda gera muitas dúvidas e preconceito. Como mudar esse cenário?
Paulo Hoff: Acho que só com o tempo. Pessoas como a nossa presidente, Dilma Rousseff; José Alencar, Ana Maria Braga e Hebe Camargo, que foram a público dizer que estavam com câncer e enfrentaram ou estão enfrentando a doença, ajudam a mostrar que você pode viver com o câncer e que há cura.
São pessoas famosas, que têm dinheiro. Muitas vezes, a sensação é de que só há cura e chances de bons tratamentos para quem tem uma condição de vida melhor. O tratamento é o mesmo no sistema público e no particular?
Hoff: Existe uma grande diferença regional. Não é porque o indivíduo faz o acompanhamento na rede pública que necessariamente vai ter um tratamento menos completo, mas na rede pública há uma pressão maior, o tempo do médico para atender o paciente é menor e isso pode dificultar o atendimento.
Outro problema é que na rede pública existe uma demora da visita inicial, onde se faz o diagnóstico de uma suspeita de tumor, até o acesso aos exames que vão comprovar a presença desse tumor. Na rede privada, há possibilidade de diagnóstico muito mais rápido. Porém, mesmo na rede privada, há planos de saúde que dificultam a atuação do médico e pode haver demora. Em São Paulo, por exemplo, o atendimento do Instituto do Câncer do Estado é de alto nível e eu não me envergonho de mostrar o que fazemos a ninguém. Todos ficam muito impressionados, inclusive estrangeiros.
O que o senhor acredita que faça a diferença no atendimento oferecido no Icesp?
Hoff: É um atendimento muito humanizado. O paciente sabe o nome do médico responsável pelo tratamento dele. Lógico que, quando se faz 11 mil consultas por mês, teremos pessoas insatisfeitas. Mas o nível de aprovação do Icesp, medido pelo Ibope, é de 92%. Lá, o paciente recebe atendimento multidisciplinar com grandes especialistas e tem alta tecnologia à disposição. O Icesp tem o maior parque radioterápico da América Latina.
O senhor espera que ele sirva de modelo para outros hospitais?
Hoff: Seria falsa modéstia dizer que não espero. Gostaria sim que outros estados seguissem a mesma linha, dando importância ao câncer. Sei que é caro e difícil, mas acho que os 92% de aprovação dizem que estamos fazendo alguma coisa certa lá. Mas não podemos esquecer que temos outros bons serviços no Brasil, como o Instituto do Câncer no Rio de Janeiro.
Ainda temos poucos institutos especializados no tratamento de câncer no País?
Hoff: Para o tamanho da população sim, temos poucos oncologistas. Não sabemos quantos exatamente, mas a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica tem menos de mil afiliados. Para um país de 200 milhões de habitantes com uma doença de 500 mil casos a cada ano, é pouco.
Qual é o grande desafio do sistema público em relação ao câncer hoje?
Hoff: São vários: acesso à medicação, à radioterapia, à cirurgia, tudo isso conta. Mas a demora entre a suspeita e o diagnóstico é algo que a gente tem de focar a atenção. Com o diagnóstico precoce, inclusive, você tem o potencial de reduzir o custo, porque o tratamento inicial é mais barato.
Nesse sentido, é preciso educar a população também para buscar diagnósticos, fazer exames de prevenção rotineiramente?
Hoff: Acho que sim, mas aí depende de qual população estamos falando, porque o indivíduo muito humilde precisa ter o acesso facilitado. Educá-lo é importante, mas é preciso dar a ele a possibilidade de agir quando houver uma suspeita.
Os médicos brasileiros estão preparados para lidar com o câncer?
Hoff: O número de médicos, técnicos, enfermeiros e físicos com interesse nessa área é bem limitado. Mas estamos alcançando o patamar de qualidade de vida, exposição a produtos químicos e sobrevida dos países desenvolvidos. Infelizmente, vamos ter um aumento grande nos casos de câncer, chegaremos a 1 milhão. Se com metade disso já é difícil disponibilizar especialistas no País como um todo, imagina quando houver o aumento? Precisamos treinar médicos em todo o Brasil.
Falta interesse dos profissionais ou conhecimento sobre o assunto?
Hoff: A oncologia é uma especialidade nova. Nos Estados Unidos, ela se tornou uma especialidade reconhecida na década de 70. No Brasil demorou mais ainda, mas isso vai melhorar com o tempo. Outro problema é que o médico que não é oncologista, mas que está em contato direto com o paciente no dia a dia – o clínico geral, o pediatra, o ginecologista – tem de ser capacitado para fazer o diagnóstico precoce.
Quais são os principais avanços obtidos no tratamento do câncer hoje?
Hoff: Primeiro, o diagnóstico precoce certamente vem aumentando. É difícil provar isso em termos estatísticos, mas estamos vendo mais pacientes com tumores menores, especialmente na prática privada. No sistema público, infelizmente, essa tendência existe, mas não é tão acelerada.
Houve ainda desenvolvimento de tratamentos complementares como a quimioterapia e a radioterapia, que são bastante eficientes e já foram desenvolvidas para uma série de tumores. Para os pacientes com doença mais avançada, desenvolvemos outras terapias que ainda não aumentaram a cura, mas a chance de benefício, de sobrevida prolongada e, mais importante, da individualização do tratamento. O futuro do tratamento do câncer não é tratar todo mundo da mesma maneira, é individualizar cada caso.
Em que nível de individualização o tratamento está hoje? É na dose de medicamentos, tipos ou combinação deles?
Hoff: Para câncer de mama, por exemplo, selecionamos remédios diferentes. É talvez o tipo mais individualizado de tratamento.
Por que isso acontece mais com o câncer de mama? É o mais comum?
Hoff: É um dos mais comuns. Hoje no Brasil é o mais comum em mulheres. Por ser comum, já seria também muito estudado, mas ele foi o primeiro tumor em que se teve formação de grupos de pacientes que fizeram sua voz ser ouvida, exigindo que o governo e as empresas investissem na busca de tratamento. O engajamento feminino levou ao aumento da pesquisa na área e a uma compreensão maior da doença.
É possível evitar o câncer com mudanças de hábitos? Vale a pena investir em campanhas de prevenção como acontece hoje com a hipertensão e a diabetes, por exemplo?
Hoff: Existe como evitar, mas não posso dizer compreendemos exatamente como fazer. Parece que fazer exercício regularmente e ter uma dieta com muitas frutas, verduras, pouca gordura e uma quantidade limitada de carne vermelha ajuda a evitar o desenvolvimento de câncer. Não ser uma pessoa obesa e ter hábitos de vida saudáveis também. Agora, em que proporção isso ajuda, é muito difícil dizer, porque o processo de formação do câncer leva décadas na maior parte dos casos. Acho que as campanhas ajudam, mas o combate ao câncer tem de ser algo constante.
O que o Brasil precisa fazer de mais urgente para enfrentar o câncer?
Hoff: Acelerar sua participação em estudos clínicos e liderá-los. O Brasil está a caminho de se tornar a quinta economia do mundo e tem obrigação de gerar conhecimento.
E o que falta para que isso se torne realidade?
Hoff: Sempre falta tudo, mas temos de criar uma cultura de pesquisa e reduzir a burocracia. Só a China tem um processo mais burocrático que o nosso para aprovar pesquisas em pacientes. A pesquisa clínica tem de ser feita com o mais alto nível de ética e proteção ao paciente, mas o processo de aprovação tem de ser mais rápido.