Apenas nos últimos dez dias, três grandes estudos foram divulgados com o objetivo de lutar contra os micro-organismos
Pesquisadores em diversas partes do mundo estão numa corrida contra a
evolução. Apenas nos últimos dez dias, três grandes estudos foram
divulgados com um objetivo comum: buscar armas para lutar contra o
rápido avanço das superbactérias, micro-organismos que se tornaram
resistentes a todos ou à maior parte dos antibióticos disponíveis. Esses
patógenos já chegaram, em intensidades diferentes, a todos os países.
Segundo o relatório Organização Mundial de Saúde (OMS), representam uma
ameaça às conquistas da medicina moderna, em que infecções e lesões hoje
sem gravidade poderão voltar a trazer risco de morte.
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Divulgação / Fiocruz - Pesquisadora Ana Paula Assef da Fiocruz: ‘a situação está bem crítica’, afirma |
A descoberta da penicilina, em 1928, por Alexander Fleming, foi uma
revolução no século XX ao controlar infecções bacterianas até então
fatais. Por décadas, os antibióticos estiveram um passo à frente dos
constantes inimigos em mutação. Agora, estamos perdendo posição nessa
corrida, depois de anos de uso abusivo e, às vezes, inadequado desses
medicamentos em humanos, animais e agricultura, além da falta do
desenvolvimento de novas grandes classes de drogas desde a década de
1980.
— De fato houve uma seca de antibióticos — comenta o infectologista
Carlos Kiffer, pesquisador do Laboratório Especial de Microbiologia
Clínica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). — O retorno de
investimento da indústria farmacêutica é maior no caso de doenças
crônicas, em que as pessoas se tratam por mais tempo, do que as agudas.
Além disso, o fluxo de novas drogas é demorado. Então, quando são
lançadas, as bactérias já estão adquirindo resistência. A quem vai
interessar? Por isso é tão importante o incentivo governamental — diz.
As consequências da falta de interesse das indústrias já são vistas
na prática. Nos Estados Unidos, dois milhões de americanos adoecem
anualmente por causa das bactérias resistentes aos antibióticos, e pelo
menos 23 mil morrem dessas infecções, segundo dados do governo
divulgados em maio. Além disso, mais de 450 mil casos de tuberculose em
2012 foram causados por bactérias super-resistentes no mundo. No Brasil,
a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) diz não ter dados
de óbitos causados por esses organismos, mas tem um boletim que
registrou quase dez mil casos de bactérias resistentes a remédios nas
UTIs do país em 2012.
A situação alarmou a OMS, que convocou os governos a agir. E
investimentos em pesquisa voltaram a ocorrer em alguns países, como
Estados Unidos, Reino Unido e Canadá.
Polimixina, fungos e novos alvos
Três estudos com abordagens bastante diferentes foram divulgados nos
últimos dias. Uma das possibilidades de curto prazo é a de pesquisadores
da Universidade de Buffalo (EUA), com recursos de US$ 4,4 milhões do
governo americano. A ideia é usar um antibiótico desenvolvido há mais de
50 anos, mas que tinha sido deixado de lado por ser tóxico para os rins
e o sistema nervoso: a polimixina. Para esses pesquisadores, é possível
otimizar a dosagem para torná-la uma munição contra algumas
superbactérias (Acinetobacter baumannii, Pseudomonas aeruginosa e Klebsiella pneumoniae), ao menos enquanto não surgem drogas mais poderosas.
Outra perspectiva está sendo desenvolvida pela Universidade McMaster,
do Canadá. Lá, descobriu-se uma molécula derivada de um fungo
encontrado no país, conhecida como AMA, capaz de desativar a enzima
NDM-1 (ou Nova Délhi Metallo-beta-Lactamase-1), a responsável por tornar
as bactérias Klebsiella pneumoniae e Escherichia coli resistentes a uma classe de antibióticos (betalactâmico). Essa opção, no entanto, ainda estaria longe de virar realidade.
— A evolução da resistência está certamente ultrapassando a
descoberta de novas drogas agora. Para o nosso inibidor de NDM-1,
estamos a anos de distância da clínica. Ainda são necessários muitos
estudos de toxicidade e farmacologia para mostrar que ele é seguro —
explicou ao GLOBO o autor principal do estudo Gerry Wright, diretor do
Instituto de Pesquisa sobre Doenças Infecciosas da universidade.
A terceira possibilidade, considerada a mais promissora, muda o alvo
contra a bactéria. Pesquisadores da Universidade de East Anglia, no
Reino Unido, sabem que uma das principais famílias de bactérias, a das
gram-negativas (por exemplo, a Escherichia coli), tem um
membrana externa de gordura que as protege de antibióticos. A inovação
foi encontrar um caminho por meio do qual se possa furar essa barreira
protetora.
— Esse mecanismo é interessante porque os outros usados pelos
antibióticos já estão saturados — comemora a pesquisadora do Laboratório
Pesquisa em Infecção Hospitalar da Fiocruz, Ana Paula Assef. — Mesmo
que surgissem novos medicamentos, eles seriam rapidamente superados
pelas bactérias resistentes, pois a lógica é mesma. Por isso é preciso
mudar o alvo, como este estudo está fazendo.
Ana Paula diz, no entanto, que as propostas ainda são incipientes
para se chegar às novas drogas. E, enquanto isso, no laboratório, ela
recebe de todo o país amostras bacterianas para avaliar seus mecanismos
de resistência. A situação brasileira, ela lamenta, não é nada
animadora:
— Está bem crítico no Brasil. Nossa resistência é bem alta, e o problema está bem disseminado.
As superbactérias ainda estão restritas aos hospitais, o que não
significa que todos os indivíduos que entrarem nesse ambiente estarão
sob risco.
— O problema global de resistência é grande, mas os problemas
pontuais variam de situação para situação — pondera Kiffer. — Todo
hospital tem algum problema de bactéria resistente, mas nem todos têm o
mesmo nível ou a mesma característica de resistência.
Preocupação para além dos hospitais
A preocupação de cientistas é que essas superbactérias cheguem a
contaminar indivíduos fora do ambiente hospitalar. Por enquanto não
houve registros disso, mas, segundo Ana, já foram encontradas amostras
da bactéria KPC (Klebsiella Pneumoniae) no Rio Tietê, em São Paulo, e no Aterro do Flamengo, no Rio.
Em geral, essas bactérias têm sintomas como os de infecções normais,
como febre e dores no corpo. Há organismos que podem provocar pneumonia,
infecções sanguíneas e no trato urinário. A diferença delas para outras
enfermidades é que simplesmente não respondem aos tratamentos.
Atualmente, as formas de controle do problema recaem sobre
procedimentos para tratar mais rápida e eficientemente os pacientes
infectados, no caso dos hospitais. E, fora deles, principalmente com a
restrição às vendas de antibióticos. No caso da população, evitar usar o
remédio sem necessidade, como em casos de doenças virais, ou abandonar o
tratamento antes do fim da prescrição médica.
O Globo