Não por acaso a expressão “dar à luz” é carregada de múltiplos significados. Ao analisarmos a origem da expressão – ou o significado oculto do termo –, podemos trazer à tona possibilidades psiquícas, inclusive, a que associa o ato à saída da luz do útero materno, deixando o interior da mãe sombrio.
Esta primeira versão de dar à luz condiz com a dor que sentimos quando algo sai de dentro de nós, seja psiquicamente ou emocionalmente. É comum dizer, quando o amor acabou, que nos sentimos como se algo tivesse sido arrancado de nós. Assim, dar à luz alude a perdas que uma mulher tem ao parir. Quando o bebê sai de dentro da mãe, ela perde o status de grávida – por mais pesada que a barriga seja, estar grávida é uma maneira privilegiada de vivenciar a existência. A percepção da gestante, no olhar dos outros, é a de uma mulher revestida de ternura, cuidado, admiração e esperança. A gestante carrega dentro do útero o futuro!
Diante da idealização da maternidade, notícias sobre mães que atentam contra a vida de seus próprios filhos chocam muito a sociedade. Recentemente, a mídia noticiou um caso sobre uma mãe que colocou veneno para carrapato na mamadeira do filho; há, ainda, uma infinidade de matérias jornalísticas sobre mães que abandonam os seus rebentos em latas de lixo, supermercados, em rios. A despeito de todo horror que essas atitudes possam causar, cabe uma reflexão apurada sobre o tema. O resultado da compreensão das reais causas da depressão pós-parto nos auxilia a identificar até que ponto o quadro depressivo é capaz de interferir em situações dramáticas como essas.
A informação nos oferece uma visão real e crítica sobre essa doença que é tão contemporânea. Um estudo conduzido pelo Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) – em parceria com outras universidades brasileiras; financiado pela Fapesp e pelo CNPq – apontou que 27,55% das mães usuárias do sistema público de saúde de São Paulo apresentaram o problema. Entre as dos hospitais particulares, 7% registraram a doença.
Ao dar à luz, o fato de não ser mais vista como uma grávida pelos olhos alheios leva algumas mulheres a perderem a alegria da expectativa do nascimento. Esperar é uma palavra relacionada à esperança; quando nasce um bebê, a esperança do nascimento desmancha-se. Em vez disso, a parturiente entra em contato com a difícil realidade de cuidar das necessidades de um recém-nascido. Quando o nenê ainda estava dentro da barriga, a própria existência da futura mamãe garantia todas as necessidades do bebê: oxigenação, alimentação, bem-estar. A condição de gestante era suficiente para a vida que carregava em si; a gestante sentia a sua potência à flor da pele, porque a mulher grávida sente-se poderosa. Ao engravidar, ela confirmou que possui capacidade e recursos para a reprodução; para a manutenção do bebê dentro de si.
Embora não se aborde muito esse tema, o nascimento de um bebê não transforma automaticamente uma mulher em uma mãe; não há um passe de mágica para isso. Dar à luz lança a mulher em uma existência complexa. E o que acontece? O bebê chora e a mãe não dá conta de decifrar esse choro; ela cai do estado de onipotência – suficiente e capaz de lidar com as demandas da gestação – para a de impotência. Por que? Em sua imaginação, essa mulher idealizou ser uma mãe maravilhosa e ter um filhinho perfeito. Essa idealização confronta-se com a realidade de um bebê normal, ou seja, um bebê que chora, acorda a mãe e muitas vezes machuca o seio materno ao mamar. Na fantasia prévia ao nascimento, a mãe, por sua vez, teria muita calma; seria paciente; estaria sempre disponível. No mundo real, ela perde a calma, fica nervosa e, muitas vezes, não está disponível. É por isso que o bebê faz, por inúmeras vezes, com que a mãe se sinta péssima consigo mesma. Ao mesmo tempo, ela tem sentimentos negativos em relação ao bebê, por fazê-la sentir-se dessa forma.
O ato de dar à luz faz com que a mulher tenha contato com questões complexas apresentadas bem antes do tempo necessário para maturar a ideia do existir para outro – além do viver para si. De uma hora para outra, “ser, existir e viver para si mesma” não faz mais sentido; a mãe precisa se doar para outro ser, que inicialmente é um pequeno desconhecido que chora, exige e cobra. Talvez as leitoras fiquem abaladas com o termo “pequeno desconhecido”, então vou me explicar melhor… O amor entre uma mãe e o seu bebê é construído no dia a dia – requer tempo, porque amar é um processo de construção. A recém-mãe precisa se doar para um bebezinho pequenino que pode até ser fofo, mas ela ainda não desenvolveu a capacidade de amá-lo tanto quanto o necessário. Essa existência faz com que se sinta pressionada; este recém-nascido a acusa sem palavras, de uma forma bem mais intensa, por meio da comunicação emocional. Esta mulher que deu à vida é péssima pessoa quando não atende as necessidades. E, meu Deus, como é difícil atender as necessidades de um recém-nascido!
Um recém-nascido chora porque tudo é novo, assustador e difícil. Antes de nascer vivia dentro da barriga da mamãe, na água quentinha e gostosa; não sentia fome, frio ou calor; não precisava respirar. Suas necessidades eram atendidas antes de as perceber. Agora, os pequeninos órgãos precisam se adaptar à nova e dura realidade da vida. O intestino necessita evacuar, o estômago digerir, o pulmão respirar. O bebê antes de nascer estava totalmente imerso no líquido amniótico, por isso não conhecia os limites do eu; não precisava lidar com fronteiras porque bebê-mamãe eram um só. Quanto sofrimento é nascer! O choro desesperado muitas vezes conta a história do medo e do profundo desamparo que cada recém-nascido vive – com maior ou menor intensidade.
Um recém-nascido sofre com a constante sensação de estar caindo em um abismo – daí o reflexo de Moro. E nem sempre quando a mãe o pega no colo, em uma desesperada tentativa de juntar-lhe os pedaços, ela consegue, porque os próprios pedaços da recém-mãe também estão desconjuntados. Ela precisa aprender a viver como mãe, da mesma maneira que o bebê necessita aprender a viver.
Parece que trago tudo isto à baila para piorar a situação que já não está fácil quando se vive a depressão pós-parto – ou algo parecido com ela. Mas, na realidade, trago estas ideias à consciência com a intenção expor um panorama amplo desse processo que, embora natural, é árduo e penoso para a recém-mãe. Assim como foi para avós, bisavós…
Quando a mulher se torna mãe, pode vir à tona o resgate do próprio abandono e a necessidade de vingança – a mulher tende a reviver as tragédias pessoais da fase de quando foi um bebê. Por essa razão, defendo que a saúde pública deve se preocupar em oferecer apoio psicológico às recém-mamães; esse serviço é tão necessário quanto o pré-natal ou quanto um médico para realizar o parto. Sem sustentação psicológica, as mães não encontram forças para sustentar a constituição física, emocional e psicológica saudável de seus bebês – e acabam cometendo crimes contra os rebentos ou criam pessoas que futuramente possam cometer graves delitos contra os próprios filhos. Ou seja, um círculo vicioso formado de negligências e maus tratos transmitidos de geração para geração, porque é muito difícil dar o que não se recebeu.
Os jornais divulgam o resultado dos atos de mães que deixaram o ódio tomar conta por falta de amparo psíquico e emocional; por falta do registro de uma boa mãe que cuidasse delas com amor quando eram apenas inocentes bebês. Ressalto que o vilão dos atentados cometidos pelas mães contra os próprios bebês é o sofrimento da recém-mamãe – e é esse aspecto que tem recebido pouca atenção dos profissionais de saúde, dos órgãos de saúde pública e da própria mídia. Afinal, como diz com grande sabedoria o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda: (…) “A dor da gente não sai no jornal”.
Fonte Zero Hora