Pacientes sobrevivem graças a novas terapias baseadas no genoma, ainda muito caras, conta a rotina é para a vida inteira
Todos os dias, a designer Melissa Vianna toma um comprimido pela manhã. Fora a necessidade de manter o hábito com rigor, o dia dela nada tem de excepcional. Se divide entre família, o trabalho num escritório na Zona Oeste do Rio e lazer. Excepcional é o medicamento. Melissa depende de um único comprimido diário para viver.
O comprimido de aparência corriqueira faz parte de uma classe de remédios que transformou o tratamento do câncer. Salva gente para quem a medicina convencional nada oferece. Quinze anos após o anúncio do sequenciamento do genoma humano, drogas assim, as chamadas terapias-alvo, começam a tornar realidade promessas deste que é considerado um dos maiores feitos científicos da Humanidade.
As promessas continuam a superar por larga margem os resultados concretos. Mas estes representam vida — e com qualidade — para um grupo crescente de pacientes, como Melissa. Ela não perde o sorriso nem a esperança de que a medicina avance e lhe dê mais do que uma droga que de tão nova ainda é incerta. E ofereça também preços mais acessíveis do que os R$ 32.780 que o tratamento com terapia-alvo custa por mês, pagos pelo plano de saúde após uma ação na Justiça.
— Hoje, você precisa ter um excelente médico e um advogado tão bom quanto; sem este último, pagar o tratamento é inviável — afirma Melissa.
O câncer é, desde o princípio, um dos alvos principais da pesquisa do genoma. O nome que ainda inspira medo e traz estigma engloba mais de cem tipos de doenças. De fato, cada pessoa com câncer tem uma doença tão única quanto o seu DNA. É o conhecimento dessas particularidades que tem produzido avanços.
Hoje, o câncer é a segunda maior causa de morte não violenta no Brasil e em boa parte do mundo, atrás apenas das doenças cardíacas. Os números continuam a crescer não somente devido ao envelhecimento da população, mas ao surgimento de casos em pessoas mais jovens com causas tão variadas quanto misteriosas, indo do tabagismo a mutações e fatores ambientais ainda não bem conhecidos.
Melissa, de 53 anos, é um desses casos cuja causa permanece misteriosa. Um dia, há pouco mais de dois anos, começou a sentir falta de ar e uma sensação de peso sobre o coração ao se deitar do lado esquerdo. Pensou que fosse refluxo porque já havia sofrido disso antes. Tratou. Não melhorou. O médico pensou que os pulmões estavam bem, pois nos exames clínicos não havia sinais de complicação. Pediu uma radiografia. Quando esta ficou pronta, quase não se viam os pulmões, ocultos por uma mancha branca.
— Isso foi em 22 de maio de 2013. O dia em que minha vida mudou para sempre. A expressão do técnico do raio X era a pior possível. Ele parecia tão surpreso quanto eu. Nunca fumei. Sempre fui saudável. Fazia checkups regulares. O que eu tinha? — lembra.
De início, o médico, um clínico, cogitou uma tuberculose. Um amigo pneumologista entrou no caso. Pediu uma tomografia. O resultado, uma massa no mediastino. A desconfiança: câncer de pulmão. Fez-se uma biópsia. O resultado: um adenocarcinoma de pulmão, inoperável por estar atrás do coração.
— Um dos piores momentos foi ouvir o médico que fez a biópsia dizer com frieza que o prognóstico era o pior possível. Achei que minha vida tinha acabado. Não sabia o que dizer aos meus filhos, marido e amigos que esperavam do lado de fora — lembra ela.
Melissa teve apoio. O mais velho dos dois filhos, de 30 anos, foi morar com ela. O marido esteve o tempo todo presente e os amigos não faltaram. Mas o prognóstico não mudava. Ela também encontrou frieza na médica do Hospital Universitário Clementino Fraga, da UFRJ, que lhe disse só restar uma quimioterapia agressiva — leia-se uma vida de mal-estar permanente, desfiguração (os cabelos caem e o corpo incha com cortisona) e perda de forças, dentre numerosos outros efeitos colaterais.
— “Tenho um paciente que sobreviveu assim seis anos”, me disse a médica, como se fosse muito. Desci aos prantos os 14 andares de escada. Não era a vida dela. A minha parou. Tinha sido congelada — conta.
Ela procurou um outro oncologista, mais humano, que também lhe recomendou sessões de quimioterapia. Foi-se a saúde, ficou o tumor. Desesperada, chegou a visitar uma freira famosa por supostas curas que lhe disse para não tomar mais remédios.
— Graças a Deus e ao Drauzio Varella não segui seu conselho. Estaria morta — frisa.
Chegou então a Carlos Gil, oncologista clínico coordenador do grupo NEOTórax da Oncologia D’Or e Pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. Este insistiu no diagnóstico molecular. O outro médico dizia que era “bobagem” e que “não levaria a nada”. Mas Gil queria saber a “identidade” do tumor, os genes mutados ligados à doença. Se ela fosse descoberta, poderia haver uma terapia- alvo. Melissa fez dois exames no Brasil e um nos EUA, e o resultado foi inconclusivo. O médico não desistiu e mandou uma amostra do tumor para o Japão.
Para isso, foi preciso fazer uma nova cirurgia, para coletar, mais uma vez, um pequeno pedaço do tumor. Mas então ele revelou sua essência. Tinha uma mutação chamada Ros1. Esse tipo de mutação responde por menos de 2% dos casos de adenocarcinoma. Mas para ela há uma droga específica, a crizotinib.
— Fiquei muito feliz. Tinha esperança. Mas fui orientada a buscar imediatamente um advogado para conseguir autorização da Anvisa (o medicamento não era liberado aqui) e o pagamento pelo plano. E ainda é preciso contratar uma importadora de São Paulo, a única que pode trazer. É mais um sofrimento — destaca.
A tranquilidade de volta
O medicamento que salva Melissa chega por Sedex, entregue todos os meses em sua casa. Com ele, o direito de uma vida normal. Em dois meses de tratamento, iniciado em novembro de 2014, o tumor havia desaparecido no exame de imagem. Junto com ele e o fim da quimioterapia, todos os sintomas. De volta, os cabelos, o bem-estar e a vida normal.
— Recuperei minha vida. Quero voltar a praticar atividade física. Posso aproveitar os momentos preciosos com meu marido, meus filhos, minha família e amigos. Deixei um dos meus trabalhos. Passei a valorizar mais cada dia, a ter mais compaixão. Estou mais próxima de Deus e da natureza. O câncer nos transforma para sempre — diz.
Melissa sabe que a droga é nova e que nunca foi usada por muito tempo para que se conheça sua ação de longo prazo.
— Minha preocupação agora é ter a garantia de que o plano vai pagar. De que terei essa chance. Não tenho data para parar. Se parar, o tumor volta — frisa ela, que contou sua história para que outras pessoas com câncer tenham mais acesso à informação sobre novos tratamentos. — Eu não sabia nada.
Quero ajudar outras pessoas a não passarem por isso.
O Globo
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