Álcool e tabaco são drogas altamente viciantes. Mas sua produção, sua venda e seu consumo são legais na maior parte do mundo. Por isso mesmo, são também as drogas mais usadas no planeta. E o fato de serem permitidas não diminui os danos que podem causar. Ao contrário, isso as torna as substâncias viciantes que representam de longe o maior fardo à saúde pública global, muito mais do que todas as drogas ilícitas, como maconha, cocaína, heroína e outros opioides, juntas, mostra uma revisão geral de estudos que compilou as melhores e mais recentes informações disponíveis atualmente sobre uso de drogas, lícitas ou ilícitas, e suas consequências, publicada nesta sexta-feira no periódico científico “Addiction”.
De acordo com os dados levantados, o álcool, como era de se esperar, tem a maior prevalência de uso, e abuso, no planeta. Com venda livre e publicidade praticamente sem restrições na grande maioria dos países, o consumo de bebidas alcoólicas atingiu 6,42 litros anuais de álcool puro per capita da população mundial com mais de 15 anos em 2015, com mais da metade das pessoas nessa faixa etária (55,3%) tendo bebido pelo menos uma vez na vida, e cerca de 63,5 milhões consideradas dependentes.
Mas o problema maior é que quase uma em cada cinco de todas as pessoas com mais de 15 anos no mundo (18,4%) e duas em cada cinco entre as não abstêmias (39,6%) relataram pelo menos um episódio de consumo excessivo de álcool — determinado como 60 gramas ou mais da substância pura de uma vez, ou o equivalente a 1,5 litro de cerveja com uma concentração de 5% de álcool por volume — num período de 30 dias. Assim, o álcool também causou um grande número de mortes e de anos de vida saudável perdidos no mundo em 2015. Segundo a revisão, foram mais de 2,3 milhões mortes naquele ano devido ao consumo de bebidas alcoólicas, com uma perda de quase 85 milhões de anos de vida saudável entre seus consumidores.
Já com relação ao tabaco, alvo de uma onda de limitações no seu consumo e publicidade nas últimas décadas, a revisão indica uma prevalência de 15,2% no seu uso diário em 2015, com uma grande diferença entre homens (25%) e mulheres (5,4%). Ainda mais danoso que beber, o tabagismo provocou o maior número de mortes e de anos de vida saudável perdidos no mundo em 2015, respectivamente quase 7,2 milhões e cerca de 171 milhões. Vale destacar ainda que os números relativos ao uso de tabaco coletados na revisão se referem apenas às utilizações de queima — cigarros, cachimbos e charutos —, e não levam em conta outras formas de consumo, como o tabaco mascado, assim como ignoram o fumo esporádico, também muito comum.
Entre as drogas em geral ilícitas na maior parte dos países, a maconha, que passa por um processo de liberalização, regulamentação ou descriminalização em diversas nações, é a mais usada no planeta. De acordo com o levantamento, 3,8% da população mundial com entre 15 e 64 anos consumiu a cannabis ou seus derivados em 2015. Em segundo lugar vieram as anfetaminas, com uma prevalência de 0,77% nessa faixa etária, seguida dos opioides, prescritos ou não, com 0,37%, cocaína, com 0,35%, e uso injetado de drogas (que podem incluir cocaína e opioides como heroína e morfina), com 0,25%. O uso de todas elas, no entanto, teria provocado menos de 500 mil mortes e uma perda de quase 28 milhões de anos de vida saudável em 2015.
— O grande problema com o álcool e o tabaco é a alta prevalência de seu uso, muito maior que das drogas ilícitas — destacou Robert West, professor do University College London, editor-chefe do “Addiction” e um dos autores da revisão publicada pelo periódico. — E sim, algumas drogas ilícitas, como heroína e outros opioides, têm maior risco e fardo à saúde por usuário, mas, se olharmos para outras, como a maconha, ela é muito menos danosa que o tabaco ou o álcool. A questão então não é se a droga é legal ou ilegal, mas o quão danosa ela é e o quanto ela é usada, fatores esses que fazem do álcool e do tabaco tamanhos fardos à saúde global.
Proibição que não resolve
Diante disso, West considera que a solução para o problema não está na simples proibição, mas em uma mudança de atitude dos governos, e da cultura da população, com relação ao uso dessas drogas, em especial o álcool. Segundo ele, é possível, e necessário, repetir com as bebidas as restrições à publicidade e as alterações na percepção do público que estão levando à redução na aceitação e no consumo de cigarros em muitos países do mundo. Assim, comportamentos como o chamado binge drinking, o consumo excessivo de álcool de uma vez, será visto como anormal, e não tolerado ou até mesmo estimulado.
— Temos muitas evidências de coisas que podemos fazer, mas isso requer vontade política dos governantes e informação à população — diz ele. — No caso do álcool, por exemplo, sabemos que seu uso é muito sensível a questões de preço, disponibilidade e propaganda. Mas, na Europa, onde o consumo de álcool é o mais alto do planeta, os governos sabem o que podem fazer para combatê-lo, mas não fazem. E não só porque o público é contra. Se fossem informadas do tamanho do problema e suas consequências para toda sociedade, creio que as pessoas aceitariam pagar mais pelas bebidas e limitar sua propaganda. Mas aí temos um forte interesse comercial envolvido. A indústria do álcool está tão próxima política e pessoalmente dos governantes que é muito difícil eles tomarem uma atitude.
Opinião similar tem Sabrina Presman, psicóloga e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas. Segundo ela, é urgente que os países adotem políticas de prevenção eficazes, que ajudem a coibir o consumo dessas substâncias, principalmente o Brasil, onde considera que ainda há um longo caminho a percorrer em relação ao álcool.
— A maior parte da população acaba experimentando essa droga no final da infância e início da adolescência. É uma droga permitida e até mesmo estimulada. Há festas de 15 anos com bebida permitida e ambulâncias na porta. Há eventos culturais e esportivos patrocinados pela indústria do álcool, propagandas que estimulam o consumo — destaca, acrescentando, por outro lado, que a política brasileira em relação ao tabaco pode servir como exemplo para outros países: — No Brasil temos conseguido mudar essa realidade de consumo do tabaco. Na década de 1980, a prevalência de consumo na população era de 39%, hoje é 10%. Foram colocadas em prática ações como a proibição da propaganda na televisão, restrição de fumo em ambientes fechados, tratamento para tabagista por meio do SUS (Sistema Único de Saúde). Foram essas políticas públicas que ajudaram a mudar uma cultura na qual o tabaco era visto como algo bonito. Mas ainda não conseguimos fazer isso com o álcool.
O Globo
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