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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Vigilância Sanitária, economia e barreiras técnicas

Quem pensa que vigilância sanitária cuida apenas da qualidade, eficiência e segurança de medicamentos acerta em parte, mas não conhece o principal. As funções do órgão de vigilância sanitária (no Brasil a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária) vão além, pois influenciam a economia, o acesso da população aos medicamentos (disponibilidade e preço) e portanto norteiam a soberania e independência do país na saúde. Exercer barreiras técnicas e comerciais é uma das mais importantes funções desse órgão, a exemplo do que ocorre em todos os países desenvolvidos. Cada país procura conservar o que produz e impedir a entrada de produtos desnecessários e caros. Parece mentira que isso ocorra em saúde, mas sobram exemplos. Para entender barreiras técnicas e comerciais, convém conhecer como o Brasil desenvolveu a Embraer. Foram criadas normas técnicas e altas taxas que impediam pequenos aviões estrangeiros de entrar no Brasil, reservando o mercado à indústria nacional. Entravam os grandes jatos, que a Embraer ainda não conseguia produzir. Dominada a tecnologia dos aviões pequenos, a empresa foi crescendo, fazendo aviões maiores e começando a exportar. Remédios, aviões, alimentos, automóveis, farinha e outros produtos seguem uma mesma regra comercial: é a proteção do produto nacional por barreiras técnicas e comerciais contra a indústria estrangeira: - por que o Brasil tem dificuldade em exportar vários de seus produtos agrícolas? - por que carros americanos são raramente vistos na Europa? - por que o Brasil briga tanto com o Canadá por causa dos aviões? Não seria mais barato importar aviões canadenses da mesma forma que importamos medicamentos embalados? A verdade científica é difícil de apurar, fácil de distorcer, há milhares de produtos a controlar, além de haver muito dinheiro e aliciamento envolvidos. Planejando pesquisas com doses insuficientes ou excessivas de concorrentes, os resultados distorcem a verdade. Esconder resultados negativos e divulgar apenas os positivos é prática antiética, mas muito comum. As “razões científicas convenientes” parecem sérias, iludem técnicos incompetentes, cientistas incautos e população, mas saltam aos olhos quando se compara decisões entre países, por exemplo: - como explicar por que a dipirona não é vendida nos Estados Unidos, mas há décadas é vendida na Europa? - por que o bromato é tão perigoso no Brasil, que utiliza vitamina C como fermento de pão, e nos Estados Unidos vende-se farinha bromatada até para fazer massa caseira? No caso dos medicamentos, a “barreira técnica”, a “barreira comercial” e as “tramas de mercado” têm aspectos típicos. As indústrias farmacêuticas “multinacionais” (americanas e européias) precisam de dois mecanismos para manter sua lucratividade: as “patentes” e o “trade-up”. Para os países produtores, medicamento é produto de investimento, que traz lucro ao país e, com o dinheiro que entra, benefícios à sua sociedade. A indústria não faz pesquisa pelo bem da humanidade, mas sim porque o retorno é bom. Dentre as centenas de novos medicamentos, poucos são o que representam real novidade terapêutica. Sabe-se que a indústria farmacêutica investe entre 10 a 15% em pesquisa e mais de 20% em mercado. Portanto, é óbvio que o mercado é mais importante que a pesquisa. Para que um produto patenteado possa ser vendido é preciso criar mercado: isto se faz antagonizando os concorrentes. É nesse ponto que entra o “trade-up”, ou “troca para cima” de produtos. É o mecanismo de mercado pelo qual um produto antigo, com baixo lucro, é trocado por outro de maior rentabilidade. Isso pode ser feito entre duas empresas diferentes mas é mais comum com os produtos da mesma indústria. Se uma empresa quer retirar seu produto de mercado, como a agência de vigilância sanitária pode negar seu cancelamento? No Brasil, esse jogo do mercado é crime, conhecido há vinte anos, pois existe uma lei brasileira (6360/76) que proíbe parar a produção de medicamentos essenciais. Existem raros exemplos onde foi aplicada. Veja-se o que o mercado farmacêutico está tentando fazer com o fenobarbital (Gardenal®), o medicamento mais utilizado em epilepsias que atinge 0,5% da população. O fenobarbital está em uso desde o início do século, é um excelente anticonvulsivo, eficaz e seguro Sem proteção de patente, genérico, com fácil produção, o custo do tratamento mensal é inferior a R$ 6,00 (menos de seis reais por mês). Os novos anticonvulsivos custam cerca de R$ 150,00 por mês. No preço vinte vezes mais caro; no lucro, provavelmente cem vezes maior. Na indústria, dezenas de cérebros brilhantes procuram distorcer, exagerar meias-verdades e inventar defeitos do concorrente. Cada paciente que abandonar o fenobarbital proporcionará à empresa do novo produto lucro cem vezes maior. Cada vez que uma patente está preste a expirar, já existe um novo medicamento sendo preparado para substituí-lo. O novo não precisa ser melhor, pode até ser um pouco pior que o antigo, mas precisa ter patente. Países como o Canadá, por exemplo, só licenciam novos medicamentos se houver real vantagem terapêutica, se os estudos farmacoeconômicos provarem que o a relação benefício/custo compensa e se a informação técnica for correta. Sem vigilância da informação (indicação etc.): o governo não consegue pagar o uso exagerado e desnecessário dos novos medicamentos; os pacientes não conseguem comprá-los. Peginterferona, anfotericina lipossomal e novos antiinflamatórios (inibidores da cox-2), usados abusiva e desnecessariamente, são exemplos de desperdício. O “trade-up” inclui a batalha de desgaste e retirada do mercado de genéricos. As multinacionais investem na compra de indústrias voltadas aos genéricos e hoje compõem a maioria dos donos dos genéricos. Além disso, iniciaram uma genial guerra e controle de leis para “afogar” os “genéricos”, de modo a evitar que diminuam seus lucros. Citam-se pelo menos quatro grandes vitórias das multinacionais: (1) foi proibido o uso de nome genérico em “similares”, quando bastaria identificar o nome de seu produtor; (2) foi dificultado o registro de “genéricos”, com testes nacionais que, mesmo incompletos, são caríssimos e muitas vezes desnecessários; (3) as indústrias de marca gastaram onze milhões de reais em 1999, através da ABIFARMA (que já fechou) para destruir a credibilidade de concorrentes e (4) abriram se as portas brasileiras à importação e “dumping.” É nesse ponto que deve estar atenta a vigilância sanitária do Brasil. Nos países exportadores de novos medicamentos, a vigilância sanitária ajuda, pois o lucro gerado mantém a qualidade de vida no país. Nos países em desenvolvimento, é vital conservar os bons produtos antigos, sem ser enganado por decisões aparentemente sérias mas subordinadas ao interesse comercial dos exportadores. É função da ANVISA avaliar a relação custo/eficácia/qualidade, impor barreiras técnicas, condicionar registros de equivalentes terapêuticos à sua síntese e produção no país, impedir a entrada de produtos cuja qualidade não é segura, impedir a distorção científica gerada por pesquisa antiética (quando resultados negativos não são publicados), cuidar de informação correta ao médico e ao consumidor e criar condições para o crescimento de uma verdadeira indústria nacional. Não é o que se viu nos últimos anos. A atual estrutura da ANVISA está totalmente inadequada às suas funções na defesa do país: (i) a diretoria tem que ser sempre da confiança do Presidente, portanto não pode ser estável; (ii) ao contrário, os técnicos especialistas em análises farmacológicas, que podem ser demitidos a qualquer tempo pela sua chefia, devem ser tornados estáveis, para que possam opinar livre de pressões. O oposto do que existe hoje. Se o novo governo não fizer a “inversão de estabilidade” e não cuidar da instituição de carreira técnica a vigilância sanitária continuará sendo meio de arrecadação de dinheiro para campanhas políticas. Só existirá síntese e produção de medicamentos no Brasil se o Governo decidir amparar quem investir, seja indústria nacional ou não. Melhor e mais seguro é investir nos laboratórios estatais. E se acontecer uma guerra que prejudique a exportação de medicamentos dos Estados Unidos? E se a exportação for condicionada à participação na guerra? A soberania e real independência do Brasil é proporcional à sua autonomia na síntese e produção de medicamentos. Em resumo, vigilância sanitária - ANVISA - é matéria de segurança nacional e o acesso da população ao tratamento medicamentoso deve depender da efetiva atuação do Senhor Ministro da Saúde, da Economia, do Comércio Exterior, sob supervisão pessoal do Presidente da República. Esses dirigentes devem cuidar de nossa indústria química e farmacêutica, da preservação dos bons produtos antigos, e da real produção e síntese de medicamentos no Brasil. Antonio Carlos Zanini, 64, Editor Médico do Grupo Zanini-Oga, foi Secretário Nacional de Vigilância Sanitária (980-1985) @ → zan@usp.br Outros títulos (se houver interesse) consultor da OMS: membro da Academia de Medicina de São Paulo; Coordenador do Sistema de Informação sobre Medicamentos do HCFMUSP. http://www.farmacologia.com.br/publicacoes/art_05_Barreiras_VigiSanitaria.doc

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