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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Luta pela vida, reforço da desigualdade ou gasto desenfreado? A difícil equação da judicialização da saúde

Um paciente entra na Justiça – por meio de um advogado privado – para obrigar o governo a lhe fornecer um remédio. A demanda é atendida, levando a gastos muitas vezes não previstos pelos governos municipais, estaduais e federais

Trata-se de um enredo que se repete com cada vez mais frequência no Brasil, em um fenômeno conhecido como “judicialização da saúde”. O descompasso entre os pedidos judiciais de pacientes, que querem fazer valer seu direito constitucional à saúde, e as limitações orçamentárias do serviço público é tanto que o tema entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF).

Há exatamente um ano, estão na fila de julgamento dois processos sobre o tema. O primeiro questiona a obrigação do Estado de financiar medicamentos de alto custo que não tenham sido registrados pela Anvisa, a agência de vigilância sanitária. O segundo pleiteia o custeio público de remédios que não tenham sido incluídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Ambos serão julgados juntos e foram classificados pela corte como de “repercussão geral”. Isso quer dizer que a decisão dos ministros deverá ser seguida por juízes de instâncias inferiores em casos semelhantes. A expectativa dos governos é que a decisão do Supremo seja capaz de interromper um ciclo de quebra dos planejamentos de saúde em todo o país. Já pacientes e familiares que buscam remédios na Justiça vivem a aflição de poder ter seus pleitos barrados. Nos últimos 12 meses em que o processo ficou parado nos escaninhos do STF, alguns estudos têm apontado para a complexidade do assunto.

Uma das questões é a possibilidade de que a judicialização da saúde reforce a desigualdade entre ricos e pobres no país no acesso à saúde. Por outro lado, o avanço na inclusão de medicamentos distribuídos pelo SUS parece, em alguns casos, acontecer por força das demandas judiciais. Há ainda suspeitas de que o fenômeno sirva como ferramenta de lobby para laboratórios e possibilidade de enriquecimento para advogados.

Judicialização reproduz desigualdade?
Um grupo de especialistas tem argumentado que, além de dificultar o equilíbrio entre o direito dos indivíduos à saúde e as limitações dos recursos públicos, a judicialização tem beneficiado relativamente mais pessoas com recursos, espelhando a desigualdades entre ricos e pobres no país. Essa é a conclusão de dois estudos recentes sobre o tema: um publicado como tese de doutorado na USP pela pesquisadora Ana Luiza Chieffi e outro, como auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU).

Segundo Chieffi, a questão da desigualdade é evidente em São Paulo. Ela constatou que, entre 2010 e 2014, dos 56 mil processos em que o Estado foi obrigado a fornecer algum tipo de produto relacionado à saúde, as ações foram protagonizadas por advogados privados em 64% dos casos, seguidos de longe por defensores públicos (13,8%) e promotores (9%).

Além disso, em quase metade das ações (47,8%), as receitas que levaram a processos também foram prescritas por médicos de clínicas privadas. Assim, na prática, quem precisa mais e tem menos recursos para se socorrer tem menos acesso a esse tipo de demanda judicial.

"A ação judicial está concentrada nas camadas menos vulneráveis, por isso, estes e outros dados mostram que a judicialização acentua a desigualdade no acesso à saúde", afirma Chieffi, que verificou também aumento de 63% no volume de demandas judiciais para fornecimento de produtos relacionados à saúde no Estado de 2010 a 2014.

O TCU registrou situação parecida. De acordo com a auditoria, os gastos do Ministério da Saúde para cumprir decisões judiciais passaram de R$ 70 milhões em 2008 para mais de R$ 1 bilhão em 2015.

Dos doze tribunais que forneceram dados referentes aos representantes das ações, quatro apresentaram advogados privados como protagonistas em mais de 50% das ações; outros quatro tiveram defensores públicos como majoritários. Somente o Tribunal de Justiça do Paraná apontou para a atuação do Ministério Público como majoritária.

O TCU afirma que a atuação do Ministério Público, em geral, é "bastante reduzida", e um baixo índice de ações coletivas por medicamentos reforça o caráter individual da judicialização por saúde no Brasil.

Segundo o estudo do tribunal, tal característica acaba gerando inequidade no acesso à saúde, já que pacientes que obtiveram decisões judiciais favoráveis são priorizados, "em detrimento dos demais usuários inseridos no SUS".

Por email, o ministro do TCU Bruno Dantas, relator da auditoria, afirmou que esta inequidade se relaciona a outra: a desigualdade social no país. "Há uma relativa facilidade de acesso à Justiça e uma alta probabilidade de sucesso nas ações judiciais dessa natureza, superior a 80% no Brasil.

À primeira vista, esse dado seria positivo, se não fosse um detalhe perverso: em razão dos custos processuais, as ações tendem a afastar os mais pobres", disse.

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