Embora a busca por conhecimento seja algo positivo, é equivocado imaginar que ultrapassar a realidade imposta pela natureza não crie seus próprios perigos
A busca desesperada pelo conhecimento expulsou Adão e Eva do Paraíso, mas também foi graças a ela que o Homo sapiens saiu das cavernas, dominou o fogo e inventou a roda. A inteligência humana parece não ter limites, o que leva muita gente a tentar aumentá-la com jogos de memória, “ginástica cerebral” e, até mesmo, substâncias químicas. Enquanto, contudo, o saber pode continuar a ser adquirido ao longo de toda a vida, isso não acontece com a inteligência. Segundo um estudo publicado na revista especializada Current directions in psychological science, o homem já chegou aonde devia e, se tentar comer o fruto proibido pela segunda vez, poderá sofrer graves prejuízos.
Os autores alegam que, ao desafiar sua natureza limitada, os humanos poderiam até expandir a memória, a inteligência e o nível de atenção, mas o ganho desequilibraria a cognição — para levar vantagem em uma habilidade, outra ficaria prejudicada. Ralph Hertwing, professor de psicologia social da Universidade de Basel, na Suíça, e Thomas Hills, da Universidade de Warwick, no Reino Unido, dizem que a questão é evolutiva: assim como dificilmente alguém mede mais de 2m de altura, as mentes extremamente brilhantes não passam de exceção. E, assim como pessoas muito altas sofrem com problemas de coluna e de coração, os muito inteligentes pagam um preço alto por seus supercérebros.
“Nós analisamos diversas pesquisas realizadas com pessoas caracterizadas por um alto QI ou que possuem uma habilidade especial, como memória fotográfica, e descobrirmos que, geralmente, esses indivíduos sofrem de distúrbios como autismo, sinestesia debilitante (condição na qual um sentido é trocado por outro) e diversos outros problemas neurológicos”, conta Hills. De acordo com ele, as deficiências estão associadas ao tamanho do cérebro, que, em indivíduos muito inteligentes, costuma ser maior que o normal.
“Imagine a quantidade de crianças que morreriam no parto se todos nascessem com um cérebro muito grande, desproporcional à pélvis da mãe”, questiona Ralph Hertwing. “Então, você pode perguntar: por que a evolução não selecionou as mulheres com pélvis maiores, aumentando as chances de sobrevivência da mãe do bebê?”, continua. Segundo ele, a explicação é que o formato normal dessa parte do corpo é adaptada ao bipedalismo. “Se fosse para as pessoas terem cérebros maiores, essa característica iria ‘brigar’ com o fato de andarmos sobre dois pés. A locomoção bípede requer uma arquitetura muito específica do esqueleto”, diz.
Balanço
Um dos grupos pesquisados foi o de judeus asheknazi, que têm um QI acima da média, comparando-se à população geral da Europa. Embora sejam mais favorecidos com a inteligência alta — provavelmente devido à seleção evolutiva, de acordo com Hertwing —, eles costumam sofrer de males hereditários e genéticos que afetam o sistema nervoso. Um deles é a doença Tay-Sacs, uma mutação que provoca danos neurológicos irreversíveis. Não se sabe exatamente o que faz com que os genes se alterem, mas os dois pesquisadores apostam que a habilidade especial está por trás da doença.
Como prova de que a natureza é sábia, Hills cita o estresse pós-traumático. “Se você tem uma memória absurdamente boa, não conseguirá esquecer de situações e pessoas que estão ligadas a eventos desagradáveis”, diz. Outro efeito colateral da busca excessiva pela melhoria cognitiva está associado à atenção. Manter-se focado é algo que, sem dúvidas, torna as pessoas mais produtivas, mas ser atento demais tem seus problemas também. “Vamos imaginar algo complexo, como dirigir. Você tem de estar atento a diversas coisas que são muito dinâmicas, como pessoas e carros passando, placas, semáforos etc. Uma pessoa extremamente focada pode concentrar sua atenção no ponto cego. Aí, o que acontece? Ela acaba não vendo um motorista que está bem à sua frente e o resultado disso é uma batida feia”, exemplifica.
Uma preocupação em particular de Hills e Hertwing é com o uso de substâncias químicas e farmacológicas para aumentar as habilidades cognitivas. “Remédios que potencialmente poderiam melhorar a cognição são considerados, por muitos, como uma ‘promessa para a expansão do cérebro humano’. Há quem defenda que as anfetaminas, por exemplo, melhoram a atenção, e o modafinil reforça o estado de alerta. Esses efeitos aperfeiçoariam a performance escolar, reduziriam o declínio cognitivo relacionado à idade, deixariam soldados mais preparados para o combate e até mesmo aumentariam a produtividade dos cientistas”, comentam os autores, no artigo.
Radicalmente contra esses expedientes, Hills e Hertwing contam que, em meados do século 20, o matemático Paul Erdös, que publicou aproximadamente 1,5 mil artigos, orgulhava-se de se “fortificar” com doses altas diárias de ritalina e benzedrina, café forte e pílulas de cafeína. “Naquela época, ele era uma exceção. Hoje, porém, isso é comum, com pesquisas mostrando que uma em cada cinco pessoas faz uso de substâncias químicas para melhorar as habilidades cognitivas”, lamentam. Hills volta à evolução para combater a prática: “Alguns desses medicamentos estimulam a produção de substâncias que não existem naturalmente no cérebro. Se fossem essenciais, elas existiriam”, diz.
Efêmero
Além das implicações éticas e dos efeitos colaterais de drogas tomadas sem necessidade, a má notícia para quem aposta em cafeína, ritalina e anfetamina para ficar mais esperto é que essas substâncias podem até fazer com que se atinja o objetivo — porém é algo passageiro. “Se você tomar xícaras e mais xícaras de café porque não pode dormir naquele dia para estudar para uma prova, por exemplo, certamente vai ficar acordado. Só que ingerir cafeína ou qualquer outra coisa não vai tornar você uma pessoa atenta. Assim que a substância sair do organismo, tudo volta ao normal”, alerta Ralph Hertwing.
Os autores do estudo deixam claro que não são contra a busca pelo conhecimento. Pelo contrário, exaltam a atitude de pessoas que estão sempre atrás de ampliar sua cultura. “Mas isso é algo completamente diferente de tentar ser mais ‘inteligente’. O conhecimento, sem dúvidas, é uma coisa que todos nós deveríamos perseguir. Fazer palavras cruzadas, seja para exercitar a memória ou aprender novos vocábulos, também é algo fantástico. Só que uma pessoa culta não é sinônimo de pessoa inteligente; pelo menos, não no sentido dos humanos com ‘supercérebros’, que alguns colegas insistem em dizer que, um dia, serão reais. Deixemos isso para os filmes de ficção científica”, conclui Hills.
Tentação
Segundo teólogos, a fruta — a Bíblia não fala em maçã — foi retirada da árvore do conhecimento. Desafiando as ordens divinas, o casal ancestral quis saber mais do que podia e caiu na tentação, provocando sua expulsão do Jardim do Éden.
Medição polêmica
O QI, sigla, em inglês, de coeficiente de inteligência, foi proposto em 1912 pelo psicólogo alemão Wilhelm Stern. Ele imaginou que a inteligência poderia ser medida dividindo a “idade mental”, que seria calculada por testes, pela cronológica. O QI não é consenso entre especialistas, pois não existe um único tipo de inteligência.
Os autores alegam que, ao desafiar sua natureza limitada, os humanos poderiam até expandir a memória, a inteligência e o nível de atenção, mas o ganho desequilibraria a cognição — para levar vantagem em uma habilidade, outra ficaria prejudicada. Ralph Hertwing, professor de psicologia social da Universidade de Basel, na Suíça, e Thomas Hills, da Universidade de Warwick, no Reino Unido, dizem que a questão é evolutiva: assim como dificilmente alguém mede mais de 2m de altura, as mentes extremamente brilhantes não passam de exceção. E, assim como pessoas muito altas sofrem com problemas de coluna e de coração, os muito inteligentes pagam um preço alto por seus supercérebros.
“Nós analisamos diversas pesquisas realizadas com pessoas caracterizadas por um alto QI ou que possuem uma habilidade especial, como memória fotográfica, e descobrirmos que, geralmente, esses indivíduos sofrem de distúrbios como autismo, sinestesia debilitante (condição na qual um sentido é trocado por outro) e diversos outros problemas neurológicos”, conta Hills. De acordo com ele, as deficiências estão associadas ao tamanho do cérebro, que, em indivíduos muito inteligentes, costuma ser maior que o normal.
“Imagine a quantidade de crianças que morreriam no parto se todos nascessem com um cérebro muito grande, desproporcional à pélvis da mãe”, questiona Ralph Hertwing. “Então, você pode perguntar: por que a evolução não selecionou as mulheres com pélvis maiores, aumentando as chances de sobrevivência da mãe do bebê?”, continua. Segundo ele, a explicação é que o formato normal dessa parte do corpo é adaptada ao bipedalismo. “Se fosse para as pessoas terem cérebros maiores, essa característica iria ‘brigar’ com o fato de andarmos sobre dois pés. A locomoção bípede requer uma arquitetura muito específica do esqueleto”, diz.
Balanço
Um dos grupos pesquisados foi o de judeus asheknazi, que têm um QI acima da média, comparando-se à população geral da Europa. Embora sejam mais favorecidos com a inteligência alta — provavelmente devido à seleção evolutiva, de acordo com Hertwing —, eles costumam sofrer de males hereditários e genéticos que afetam o sistema nervoso. Um deles é a doença Tay-Sacs, uma mutação que provoca danos neurológicos irreversíveis. Não se sabe exatamente o que faz com que os genes se alterem, mas os dois pesquisadores apostam que a habilidade especial está por trás da doença.
Como prova de que a natureza é sábia, Hills cita o estresse pós-traumático. “Se você tem uma memória absurdamente boa, não conseguirá esquecer de situações e pessoas que estão ligadas a eventos desagradáveis”, diz. Outro efeito colateral da busca excessiva pela melhoria cognitiva está associado à atenção. Manter-se focado é algo que, sem dúvidas, torna as pessoas mais produtivas, mas ser atento demais tem seus problemas também. “Vamos imaginar algo complexo, como dirigir. Você tem de estar atento a diversas coisas que são muito dinâmicas, como pessoas e carros passando, placas, semáforos etc. Uma pessoa extremamente focada pode concentrar sua atenção no ponto cego. Aí, o que acontece? Ela acaba não vendo um motorista que está bem à sua frente e o resultado disso é uma batida feia”, exemplifica.
Uma preocupação em particular de Hills e Hertwing é com o uso de substâncias químicas e farmacológicas para aumentar as habilidades cognitivas. “Remédios que potencialmente poderiam melhorar a cognição são considerados, por muitos, como uma ‘promessa para a expansão do cérebro humano’. Há quem defenda que as anfetaminas, por exemplo, melhoram a atenção, e o modafinil reforça o estado de alerta. Esses efeitos aperfeiçoariam a performance escolar, reduziriam o declínio cognitivo relacionado à idade, deixariam soldados mais preparados para o combate e até mesmo aumentariam a produtividade dos cientistas”, comentam os autores, no artigo.
Radicalmente contra esses expedientes, Hills e Hertwing contam que, em meados do século 20, o matemático Paul Erdös, que publicou aproximadamente 1,5 mil artigos, orgulhava-se de se “fortificar” com doses altas diárias de ritalina e benzedrina, café forte e pílulas de cafeína. “Naquela época, ele era uma exceção. Hoje, porém, isso é comum, com pesquisas mostrando que uma em cada cinco pessoas faz uso de substâncias químicas para melhorar as habilidades cognitivas”, lamentam. Hills volta à evolução para combater a prática: “Alguns desses medicamentos estimulam a produção de substâncias que não existem naturalmente no cérebro. Se fossem essenciais, elas existiriam”, diz.
Efêmero
Além das implicações éticas e dos efeitos colaterais de drogas tomadas sem necessidade, a má notícia para quem aposta em cafeína, ritalina e anfetamina para ficar mais esperto é que essas substâncias podem até fazer com que se atinja o objetivo — porém é algo passageiro. “Se você tomar xícaras e mais xícaras de café porque não pode dormir naquele dia para estudar para uma prova, por exemplo, certamente vai ficar acordado. Só que ingerir cafeína ou qualquer outra coisa não vai tornar você uma pessoa atenta. Assim que a substância sair do organismo, tudo volta ao normal”, alerta Ralph Hertwing.
Os autores do estudo deixam claro que não são contra a busca pelo conhecimento. Pelo contrário, exaltam a atitude de pessoas que estão sempre atrás de ampliar sua cultura. “Mas isso é algo completamente diferente de tentar ser mais ‘inteligente’. O conhecimento, sem dúvidas, é uma coisa que todos nós deveríamos perseguir. Fazer palavras cruzadas, seja para exercitar a memória ou aprender novos vocábulos, também é algo fantástico. Só que uma pessoa culta não é sinônimo de pessoa inteligente; pelo menos, não no sentido dos humanos com ‘supercérebros’, que alguns colegas insistem em dizer que, um dia, serão reais. Deixemos isso para os filmes de ficção científica”, conclui Hills.
Tentação
Segundo teólogos, a fruta — a Bíblia não fala em maçã — foi retirada da árvore do conhecimento. Desafiando as ordens divinas, o casal ancestral quis saber mais do que podia e caiu na tentação, provocando sua expulsão do Jardim do Éden.
Medição polêmica
O QI, sigla, em inglês, de coeficiente de inteligência, foi proposto em 1912 pelo psicólogo alemão Wilhelm Stern. Ele imaginou que a inteligência poderia ser medida dividindo a “idade mental”, que seria calculada por testes, pela cronológica. O QI não é consenso entre especialistas, pois não existe um único tipo de inteligência.
Múltiplas e específicas
Em 1983, incomodado com o conceito tradicional de inteligência, o psicólogo cognitivo americano Howard Gardner lançou a teoria das inteligências múltiplas. Para o especialista, um indivíduo pode se sair mal no teste de QI e ter péssimo desempenho em matemática e, em compensação, ser um gênio dentro de um campo de futebol. Ele, então, dividiu a inteligência em diversos campos: linguístico, musical, lógico, visual, cinestésico, interpessoal, intrapessoal, naturalista e existencialista.
De acordo com a teoria de Gardner, uma única pessoa pode ter vários tipos de inteligência, ou ser mais hábil em apenas um deles.
Completamente contra qualquer método de teste de “nível de inteligência”, ele propõe que, em vez de exigir dos alunos o domínio de todas as disciplinas, as escolas deveriam ajudar cada um deles a cultivar o seu tipo de inteligência. Para o psicólogo, não se trata de descobrir quem é ou não inteligente, mas qual habilidade cada um possui.
De acordo com a teoria de Gardner, uma única pessoa pode ter vários tipos de inteligência, ou ser mais hábil em apenas um deles.
Completamente contra qualquer método de teste de “nível de inteligência”, ele propõe que, em vez de exigir dos alunos o domínio de todas as disciplinas, as escolas deveriam ajudar cada um deles a cultivar o seu tipo de inteligência. Para o psicólogo, não se trata de descobrir quem é ou não inteligente, mas qual habilidade cada um possui.
Fonte Correio Braziliense
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