Além de identificar doenças graves desde o nascimento, estudo dos genes mostra caminhos para prevenir doenças como o câncer
Há menos de seis meses, a história médica da família da enfermeira Marissa Peu de Castro e Borges mudou também sua trajetória de vida. Em agosto de 2011, então com 27 anos, Marissa não imaginava que o câncer, doença que afetou avó, tios e o pai, chegaria a ela também.
O pai de Marissa teve câncer de intestino, mas faleceu por causa de outro, no pulmão. Apesar disso, quando percebeu um discreto sangramento nas fezes, ela não cogitou a possibilidade de algo mais grave.
O resultado da colonoscopia mostrou que Marissa, que mora em Goiânia e é enfermeira, tinha um câncer de cólon, na parte final do intestino. Ela se recorda de que, ao sair do exame, sentiu que alguma coisa estava errada.
“Quando cheguei ao consultório, já sabia do resultado. Senti que algo tinha dado errado por conta da dificuldade que o primeiro médico que me atendeu, meu amigo, teve em contar que precisávamos fazer biópsia. Entendi tudo”, conta.
O susto fez com que Marissa e seus irmãos pesquisassem a história médica da família. Além do pai, os tios tinham tido câncer. A avó paterna também. Na verdade, só uma das irmãs da avó não havia sido afetada pela doença, assim como os filhos dela.
Em pouco mais de 15 dias, a enfermeira realizou todos os exames necessários para a operação. Depois, procurou especialistas em São Paulo e está tomando uma medicação preventiva. Não precisou de quimioterapia. Aconselhada por oncologistas, buscou apoio de um geneticista.
Com a árvore genealógica da família montada pela irmã, Marissa foi aconselhada a fazer um exame genético. Ela faz parte de um grupo que começa a passar pela experiência de conferir se a causa do próprio câncer é genética: muito jovem e com um histórico familiar tendencioso.
Nesses casos de origem genética, a confirmação de que a pessoa tem chances aumentadas de desenvolver a doença é uma grande vantagem, pois permite ao médico trabalhar ações de prevenção (quando possível) e qualidade de vida, além de detecção precoce – ele passa a acompanhar o paciente mais de perto, com exames e visitas periódicas mais frequentes.
Marissa tem uma mutação no gene NLH1, conhecida como Síndrome de Linch. A caçula de três irmãos despertou no restante da família um interesse pela compreensão da doença. Além dos irmãos, que farão o teste para saber se também são portadores da mutação, outros tios querem fazê-lo.
“Toda a minha família está bem mobilizada para entender o assunto. Tenho tios que moram em fazenda, que escreveram cartas contando história da família para ajudar. Tem gente muito humilde mesmo que está juntando dinheiro para o exame, porque o vê como benefício”, diz.
Quem pode e deve fazer
Bernardo Garicochea, coordenador do Centro de Aconselhamento Genético e Câncer do Hospital Sírio-Libanês, ressalta que esse tipo de investigação não é recomendada para qualquer paciente.
“Hoje, temos condição de fazer testes para 10 genes que estão ligados a cânceres de mama, intestino, tireoide, estômago, pele e pâncreas. Muito não se descobriu ainda”, diz. Ele lembra que o histórico da família é muito importante nessa decisão de avaliar os genes.
Segundo ele, as avaliações são recomendadas para os pacientes em que o mesmo tipo de câncer se repete muitas vezes na família (especialmente no mesmo “lado”); quando a doença aparece em alguém muito jovem ou se a mesma pessoa tem dois casos diferentes de câncer.
São considerados casos “jovens”, por exemplo, mulheres que tiveram câncer de mama com menos de 40 anos, pessoas com câncer de intestino antes dos 50 anos (assim como câncer de próstata antes disso), no estômago antes dos 50 e na tireoide antes dos 30.
"É papel do geneticista montar um padrão que mostre se a probabilidade da doença aparecer é alta ou não. Só quando há testes genéticos capazes de informar com isso precisão, outros familiares que tenham alterações podem entrar em programas de prevenção especial”, afirma.
O uso de testes genéticos para a prevenção do câncer ainda é bastante recente. No entanto, outras doenças hereditárias já se utilizam das informações do DNA para o tratamento de famílias
De acordo com o Ministério da Saúde, esse é um tema que vem ganhando espaço no SUS. Existem pelo menos 26 protocolos clínicos de diretrizes terapêuticas de doenças raras e genéticas para a rede pública. Desse total, 18 foram definidos nos últimos dois anos.
Esses protocolos são orientações para o tratamento de doenças como anemia facilforme, hipotireoidismo congênito, deficiência de hormônio do crescimento, fibrose cística, doença celíaca, esclerose múltipla, doença de Gaucher.
Os pacientes são atendidos em cerca de 80 hospitais, segundo o Ministério da Saúde, que realizaram 71,5 mil consultas em genética clínica no ano passado. Esses pacientes recebem remédios, tratamentos cirúrgicos (como correções de malformações) e clínicos para reduzir sintomas e melhorar a qualidade de vida. Para isso, são gastos R$ 4 milhões ao ano.
Revolução no futuro
A maior parte dos hospitais que oferecem esse tipo de serviço no SUS está ligada a instituições de ensino. A razão é simples: grande parte das pesquisas brasileiras ocorre nas universidades. Os primeiros programas de residência médica na área se iniciaram na década de 1970.
Mara Santos Cordoba, médica geneticista do Hospital Universitário de Brasília (HUB), diz que a prática do aconselhamento genético no Brasil existe há 40 anos. No entanto, o reconhecimento da importância desse trabalho é recente.
“A procura espontânea pelo aconselhamento genético é baixa, mas as doenças genéticas geralmente são graves. Muitas levam à incapacitação permanente do indivíduo e poucas têm tratamento específico. Portanto, a prevenção é o melhor caminho”, afirma.
Mara lamenta, no entanto, que poucos pacientes tenham acesso ao aconselhamento genético. “Menos de 10% dos recém-nascidos com potencial necessidade de aconselhamento conseguem acesso aos serviços de genética”, diz.
Para Garicochea, os testes genéticos vão revolucionar a medicina. “Vamos partir para a individualização do tratamento e passaremos a cuidar de pessoas saudáveis”, garante. O médico acredita que, em breve, esses exames ficarão ainda mais acessíveis.
A preocupação de Garicochea não é com a oferta do teste genético. “O custo para o SUS não representaria muito, desde que fosse oferecido para quem precisa. A questão é que, uma vez oferecendo a chance do teste, seria preciso oferecer prevenção adequada”, ressalta.
Ele destaca que, por isso, não é “ético” investigar a probabilidade de doenças "em cujo curso ainda não se consegue interferir”, como o Alzheimer. A sensibilidade é um ponto importante no aconselhamento genético. Para ele, famílias como a de Marissa contribuem muito para o futuro da ciência.
A jovem enfermeira, que completou 28 anos no hospital, recém-operada, conta que sempre manteve o pensamento otimista em relação às chances de cura da doença. Só decidiu, depois do diagnóstico, “acelerar certas coisas”, como o casamento.
Noiva, ela decidiu que se casaria ainda no ano passado. Arrumou toda a festa em três meses. “Fiquei otimista, mas me questionei por que aquilo estava acontecendo comigo. Alguns planos ficaram mais urgentes. Para quê perder tempo?”, pondera.
Marissa torce para que as pesquisas nessa área mudem as rotinas de prevenção das doenças e contribuam para que, cada vez mais, pacientes possam ser curados.
“Não sei se pelo fato de eu ser enfermeira, estou encantada com esses estudos. Eu não tinha noção da profundidade em que estão. Em breve, espero que esse seja um benefício para todos”, diz.
Fonte Delas
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