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sábado, 7 de junho de 2014

Patente de droga para tratar de Aids no Brasil gera briga judicial entre laboratórios

Foto: Reprodução
 O Kaletra é o principal tratamento de segunda escolha
Em disputa que pode ditar rumos do tratamento, empresa brasileira quer fazer remédio criado por gigante americana
 
Uma briga na Justiça entre o laboratório brasileiro Cristália e o gigante farmacêutico mundial AbbVie pode ditar os rumos e o futuro da política de tratamento universal de portadores do HIV, o vírus causador da Aids, no Brasil. Iniciada em 2009, a ação contesta a patente do medicamento Kaletra, concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) à americana Abbott em 2000 e que deu ao laboratório o monopólio da sua venda no país.
 
Associação dos antirretrovirais ritonavir e lopinavir, o Kaletra é o principal tratamento de segunda escolha — prescrito quando os remédios da chamada primeira escolha, mais antigos, não surtem efeito devido ao desenvolvimento de resistência pelo vírus — usado no Brasil. Segundo o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), a estimativa é de que hoje ele seja distribuído pelo Ministério da Saúde a pelo menos 73 mil dos 313 mil soropositivos que eram atendidos pelo programa do governo em dezembro de 2012, a um custo de quase US$ 50 milhões anuais.
 
O problema é que uma proporção cada vez maior dos soropositivos brasileiros está infectada com cepas resistentes do HIV, necessitando de medicamentos não só de segunda como de terceira linhas, ainda mais caros, o que começa a levantar dúvidas quanto à sustentabilidade financeira do programa do governo. Além disso, no fim do ano passado o Ministério da Saúde alterou o protocolo para o fornecimento dos remédios, o que deverá colocar mais 100 mil soropositivos no âmbito do programa este ano.
 
E é aí que a briga entre Cristália e AbbVie ganha uma relevância que vai além do simples embate entre as duas empresas, pois o resultado do processo deverá estabelecer os precedentes e ordenamento jurídico que guiarão o sistema em torno do licenciamento compulsório, popularmente conhecido como “quebra de patente”, de remédios no Brasil previsto na legislação nacional sobre o assunto. Isso porque, nos últimos anos, a simples ameaça de usar o mecanismo já era suficiente para levar os grandes laboratórios a reduzir os preços cobrados do governo. Tanto que os gastos totais com a compra de antirretrovirais pelo Ministério da Saúde recuaram de R$ 1,084 bilhão em 2009 para R$ 770 milhões no ano passado. Mas esta estratégia está perdendo força, já que quase nunca a ameaça é levada a cabo, afirma Marcela Vieira, integrante da Abia e coordenadora do GTPI.
 
Fiocruz é maior produtora nacional
Marcela lembra que desde a entrada em vigor na nova lei de patentes brasileira, em 1996, até hoje, apenas um medicamento antirretroviral teve sua patente de fato “quebrada”, o Efavirenz, em 2007. Então, as negociações entre o governo e o laboratório Merck para redução de seu preço fracassaram. Com o licenciamento compulsório, um genérico do Efavirenz passou a ser importado de um laboratório indiano até começar a ser produzido pela Fiocruz, trazendo uma economia estimada em mais de US$ 100 milhões aos cofres públicos até 2011.
 
— O custo da compra de remédios antirretrovirais pelo governo vinha diminuindo, mas esta curva começa a virar — alerta Marcela. — Teremos mais pessoas em tratamento e a incorporação de novos medicamentos, com cada vez mais pacientes saindo da primeira para a segunda e a terceira linha. Tudo isso vai resultar em uma alta nos custos que coloca em risco a sustentabilidade financeira do programa. E o pior é que não vemos isso como uma preocupação do governo. Não dá para admitir que se fale que não há problema de recursos na área de saúde no Brasil. Não estamos preocupados só com a continuidade do tratamento dos soropositivos, mas com o orçamento da saúde brasileira como um todo.
 
Já Hayde Felipe da Silva, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos), maior fornecedor público de remédios genéricos para o programa de tratamento de soropositivos, no valor de R$ 200 milhões anuais, afirma que o governo deve decidir se vai estimular a indústria nacional a investir na pesquisa e desenvolvimento de tecnologia para produção local de antirretrovirais ou continuará “refém” dos grandes laboratórios multinacionais e intermediários.
 
— Nosso maior problema atualmente em relação aos remédios de segunda e terceira geração é a obtenção dos princípios ativos — conta. — Isso vai exigir um grande esforço da indústria farmacoquímica, que para isso vai precisar de um cenário de estabilidade jurídica.
 
Visão parecida tem Ogari Pacheco, presidente do Cristália:
 
— Estamos lutando por um princípio. A ideia é estabelecer uma jurisprudência que vá nortear disputas semelhantes no futuro, dando segurança jurídica para todas as empresas que queiram trabalhar e investir na pesquisa e desenvolvimento para produção destas substâncias complexas no Brasil e não ver todo seu esforço interrompido por uma decisão judicial.
 
Em nota, o Abbvie afirmou estar “seguro que sua patente do lopinavir no Brasil foi outorgada de forma válida e em conformidade com lei brasileira”.
 
Entenda o caso
Na ação na Justiça, o Cristália alega a inconstitucionalidade da concessão da patente do Kaletra por meio de um mecanismo conhecido como pipeline, criado pela lei de patentes brasileira aprovada em 1996 (9.279/96) em resposta à assinatura pelo país, na Organização Mundial do Comércio, do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), e que reconheceu pela primeira vez a patenteabilidade de medicamentos no Brasil.
 
Usando este mecanismo, grandes laboratórios como o Abbott puderam requisitar, a partir de patentes concedidas no exterior, o registro automático de substâncias e associações como o Kaletra que pela lei deveriam já ser de domínio público no Brasil. Como consequência, o Cristália também argumenta que a patente do remédio não passou por uma análise formal e técnica dos requisitos de patenteabilidade pelo INPI nem teve anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), outros requisitos da lei.
 
Em julgamento realizado em fevereiro de 2012, a juíza Daniela Pereira Madeira, da 9ª Vara Federal do Rio, acatou a alegação de inconstitucionalidade das patentes pipeline e emitiu liminar suspendendo o registro do Kaletra no Brasil. Diante disso, o então laboratório Abbott recorreu e o caso foi parar no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, ainda no Rio, onde os desembargadores Antonio Ivan Athié, Paulo Espirito Santo e Abel Gomes decidiram não abordar o tema das patentes pipeline, objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Procuradoria Geral da República também desde 2009 e que ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal.
 
Relator do processo, Athié, no entanto, concordou com os outros argumentos do Cristália e pediu a manutenção da decisão de Daniela. Espirito Santo, porém, foi contra, e em voto de desempate Gomes determinou o envio da patente para a Anvisa, condicionando sua volta à validade à anuência da agência. Esta, por sua vez, informou que aguarda julgamento pelos desembargadores de embargos de declaração propostos pelas empresas e pela própria Anvisa antes de avaliar a patente.
 
Em sua nota, o Abbvie afirmou ainda que a decisão dos desembargadores “foi favorável” ao seu ponto de vista, confirmando tanto a constitucionalidade das patentes por pipeline quanto o cumprimento das exigências da lei pelo Kaletra. “Apesar de ter sido solicitado à Anvisa que agora dê o consentimento à patente do AbbVie, esta é uma mera formalidade, já que Kaletra foi aprovado pela Anvisa em 9 de outubro de 2000. A aprovação para comercialização, conferida pela Anvisa, atesta, no Brasil, a eficácia e a segurança de um medicamento”, destaca o laboratório.
 
E como a sentença inicial de Daniela nunca foi executada, o agora AbbVie também mantém até hoje a exclusividade da venda do Kaletra no país, onerando o programa de universalização do tratamento do governo. Segundo levantamento do GTPI, os gastos só com este medicamento poderiam ser 60% menores se o Ministério da Saúde pudesse comprar seu equivalente genérico mais barato no mercado internacional. Já Ogari Pacheco, presidente do Cristália, garante que sua empresa está preparada para fabricá-lo em quantidade suficiente para suprir a demanda nacional, prevista em mais de 92 milhões de doses nas suas diversas formulações, praticando preços até 30% menores que os cobrados pelo agora laboratório AbbVie, de US$ 0,451 a unidade do tipo mais usado, com a vantagem de gerar empregos e impostos ao longo de toda sua cadeia produtiva dentro do país.

O Globo

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