Pesquisadores identificam processo cerebral ligado aos valores fundamentais para as pessoas, a respeito dos quais elas não aceitam mudar de ideia com facilidade. O estudo pode orientar políticas que buscam ordenar a vida em sociedade
“No questionário, você afirmou que não acreditava em Deus. Escolha um valor, entre US$ 1 e US$ 100, para dizer que acredita. Se não quiser mudar de opinião, passe para a próxima.” O cenário era uma sala onde só estavam o voluntário e um computador. Ninguém, além dos pesquisadores, ficaria sabendo da escolha. Ao fim da sessão, o participante poderia sair com até US$ 3,1 mil no bolso, só para voltar atrás em suas sentenças, diante de uma máquina. Nem todos se venderam.
O que está por trás da moral, do sistema de valores sagrados para os indivíduos, que não ousam renegá-los nem durante uma brincadeirinha de laboratório? Foi o que queriam saber pesquisadores da Universidade de Emory, nos Estados Unidos. Eles descobriram que a integridade é tão importante que chega a ter uma área do cérebro na qual se manifesta. Não é só uma questão subjetiva, mas fisiológica. O resultado do estudo foi publicado na edição mais recente da revista especializada Philosophical Transactions of the Royal Society.
A equipe do neuroeconomista Gregory Berns, principal autor da pesquisa, recrutou 43 participantes de ambos os sexos e idade média de 29,2 anos. A maioria, 33,8%, possui diploma de bacharel, seguida por aqueles que cursaram alguns anos de faculdade (24,6%). O experimento foi dividido em quatro partes, sendo as três primeiras monitoradas por ressonância magnética funcional, exame de imagem que permite observar a atividade do cérebro diante de alguma situação.
Na primeira fase, os participantes eram apresentados a 124 sentenças positivas e negativas que tratam de valores, sem que eles precisassem fazer nada. “Simplesmente, aparecia na tela frases como ‘Você toma Coca-Cola’, ‘Você gosta de cachorros’ ou ‘Você não quer matar uma pessoa inocente’”, descreve Berns. Depois, os voluntários tinham de escolher entre duas opções, como “Você acredita em Deus” ou “Você não acredita em Deus”. Em seguida, a tentação. “Há alguma quantia em dólar que o faça mudar de ideia para o resto da vida?”, questionava a máquina. Bastava escolher sim ou não e apontar um valor entre US$ 1 e US$ 100. Em até seis meses depois, os mesmos voluntários responderam a questionários que também perguntavam sobre sistemas de valores. Eles tinham de dizer sim ou não, e o objetivo foi comparar as respostas às oferecidas no primeiro teste.
A principal parte da pesquisa, porém, foi a terceira, na qual o cérebro dos participantes era monitorado enquanto eles repetiam as atividades realizadas na primeira fase. Os pesquisadores puderam, então, avaliar as respostas cerebrais, enquanto checavam quais os valores realmente importantes para cada voluntário. “Se a pessoa concordava em mudar de ideia em uma frase que dizia ‘Você gosta de tomar chá’, consideramos que o ato de tomar ou não tomar chá não era uma coisa muito importante para ela. Quando, porém, deixava de ganhar dinheiro porque se recusava, por exemplo, a negar que era favorável ao casamento gay, pudemos perceber que, para ela, esse é um valor moral, que não se vende”, explica Berns.
As imagens cerebrais confirmaram que, para alguns indivíduos, certos valores são sagrados. Os cientistas verificaram que, quando avaliavam a possibilidade de renegar uma determinada sentença importante para eles, os voluntários ativavam o córtex pré-frontal ventrolateral, um sistema de neurônios associado aos conceitos de certo e errado. Mesmo sabendo que poderiam ganhar dinheiro caso fingissem concordar ou discordar com algum valor sagrado, o sistema de recompensas do cérebro nem sequer se alterava.
Outra reação observada é que região da amígdala, associada às emoções, entrava em ação apenas quando os voluntários se deparavam com a oferta de dinheiro para mudar de opinião em relação a um valor muito importante para eles. “A resposta em seus cérebros é a mesma que temos quando nos sentimos ofendidos, repugnados, quando vemos que algum valor moral que nos é sagrado é corrompido”, comenta Berns. O mesmo não acontecia diante da tentação de ganhar dinheiro para trocar de ideia quando o assunto parecia irrelevante, como gostar ou não de chá.
Normas
“Entender como os valores sagrados são representados e processados na mente humana tem muitas implicações para os construtores de políticas públicas”, defende Jeremy Ginges, pesquisador do Departamento de Psicologia da Nova Escola para Pesquisa Social, de Nova York, que contribuiu com o estudo. “Quando dizemos valores sagrados, estamos nos referindo tanto a crenças religiosas quanto a normas morais e construção de identidades. Esses valores motivam muitas decisões importantes ao longo da vida, tanto da perspectiva individual quanto da social”, afirma.
De exemplo, Ginges cita vender comida normal como se fosse alimento kosher, o único permitido para os judeus; investir em fundos de responsabilidade social; ou decidir com quem se casar. “Basicamente, tudo em nossa vida está relacionado a nossos valores”, acrescenta. “Desacordos a respeito de valores sagrados também podem contribuir para muitos conflitos políticos e militares, além de estarem por trás de atos políticos violentos.”
No artigo, os autores afirmam que a maior parte das políticas públicas é baseada em incentivos, como ganhar desconto nos impostos ao exigir nota fiscal, ou dissuasões, ou ainda pagar multa se ultrapassar o sinal vermelho. “Nossas descobertas indicam que não é razoável pensar que uma política baseada em análises de custos e benefícios poderá influenciar o comportamento pessoal quando se trata de valores sagrados”, afirmam. Eles se referem, por exemplo, a uma hipotética lei que recompensasse financeiramente cidadãos que jogassem pedras em cachorros vira-latas, para evitar que eles sujassem as ruas. “Os valores pessoais sagrados são processados no cérebro de uma forma completamente diferente da relacionada ao sistema de incentivo”, destacam.
Outra dica dos pesquisadores a formuladores de políticas públicas é que grupos organizados costumam respeitar mais os valores, pois têm regras e normas sociais que ajudam a mantê-los. Dessa forma, podem ser um foco importante para negociações. “Os participantes da pesquisa que eram afiliados a organizações, como igrejas, times, grupos musicais e clubes, mostraram uma atividade cerebral mais forte nas regiões correlatas aos valores sagrados”, disseram os pesquisadores.
Palavra de especialista
O papel das emoções
“São as emoções que levam as pessoas a fazerem a coisa certa ou errada. Medo, culpa e amor desempenham um papel central no pensamento e no comportamento, incluindo o comportamento moral. Quando pedimos para um indivíduo imaginar como se comportaria diante de uma situação na qual teria de passar por cima de seus valores, ele não dá conta da intensidade de emoções que sentiria, caso essa situação ocorresse de verdade. Fizemos um estudo, publicado no Psychological Science, que mostrava isso. Estudantes diziam que mentiriam por dinheiro, se isso fosse necessário. Mas, quando oferecíamos dinheiro para que mentissem, notamos, por meio de eletrodos que mediram a força de suas contrações e batimentos cardíacos e o nível de suor em suas mãos, que eles responderam fortemente do ponto de vista emocional ao dilema moral apresentado”
Fonte Correio Braziliense
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