Um ano atrás, a opinião pública mal sabia que a planta da maconha tinha alguma utilidade para a medicina. Em janeiro, o canabidiol, então desconhecido, teve seu potencial terapêutico reconhecido pela Anvisa. Foi uma mudança simbólica radical e muito importante
Por: Tarso Araujo
O Estado brasileiro reconhece algo que mesmo as convenções internacionais de drogas teimam em negar: a Cannabis sativa possui, de fato, propriedades terapêuticas.
O canabidiol não estava proibido por representar qualquer ameaça à saúde, mas por puro desconhecimento das autoridades competentes e por preconceito com sua origem. Não se pode aceitar que uma agência nacional de vigilância sanitária nem profissionais de saúde sejam guiados por esses parâmetros, e sim pelo conhecimento técnico e científico mais moderno disponível. Que bom para todos que eles fizeram seu dever de casa.
Na prática, a reclassificação e outras medidas que a Anvisa anunciou para breve tendem a facilitar a importação do canabidiol por pacientes e pesquisadores que querem investigá-lo. Mas os produtos disponíveis ainda são importados e muito caros. Algumas decisões judiciais já obrigam o SUS a bancar esse tratamento. É justo, com quem não tem recursos para o tratamento. Mas injusto com os contribuintes, de modo geral.
A importação de medicamentos sem registro no país é uma das maiores despesas do Ministério da Saúde. E o extrato de Cannabis com alto teor de canabidiol pode ser facilmente produzido no Brasil, a partir de cultivos locais. Seria um absurdo que o Brasil, com luz e solo à vontade, pague caro para obter uma substância livre de patentes, como é o caso do canabidiol. Então, é importante incentivar não apenas o registro do medicamento, mas sua produção por empresas e/ou cooperativas nacionais.
A reclassificação do canabidiol ainda não resolveu, no entanto, outra contradição ululante. O THC, outro composto da Cannabis, também tem propriedades medicinais reconhecidas pela ciência moderna. Estudos clínicos sérios, com grandes amostras de pacientes, mostram que ele alivia dores crônicas e os sintomas de esclerose múltipla e da quimioterapia usada no combate ao câncer, por exemplo. Estudos preliminares mostram sua utilidade até no combate aos tumores.
O nabiximol, extrato natural com THC e com canabidiol, é aprovado como medicamento em mais de uma dezena de países para esclerose múltipla e o estudo que investiga sua eficácia para dores de câncer está na última fase nos EUA. Nos países que há mais tempo estudam e usam a maconha com finalidades terapêuticas –Canadá, Holanda e Israel– a própria erva vaporizada é administrada aos pacientes, com resultados positivos e custos reduzidos.
E não se pode usar contra o THC o argumento de que ele tem efeito psicoativo ou que a maconha causa dependência em cerca de 9% das pessoas que a experimentam. Se esses efeitos colaterais fossem motivo para banir o uso medicinal de um produto, não poderíamos tolerar o uso de opioides, como a morfina, e de barbitúricos e benzodiazepínicos que estão no mercado.
Muitos remédios dessas duas classes de medicamentos causam mais dependência e efeitos colaterais do que a própria maconha. Mas está claro que seu uso sob supervisão médica traz mais benefícios do que riscos. É de olho neste equilíbrio que se avalia a utilidade terapêutica de qualquer coisa. E não pode ser diferente com a Cannabis sativa e seus compostos.
É claro que reclassificar o THC e permitir sua produção no Brasil é um desafio regulatório mais complexo. Pelo menos enquanto o uso recreativo da maconha estiver proibido. Mas isso não pode nos impedir de debater e resolver o problema.
Logo, a reclassificação do canabidiol deve ser vista apenas como um primeiro passo, rumo a uma regulamentação mais abrangente sobre o uso terapêutico da Cannabis, que atenda pacientes de outras doenças. O preconceito e a desinformação não podem continuar os privando dessa alternativa de tratamento. Como cidadãos, merecemos racionalidade do Estado e temos que lutar por isso. Precisamos descascar esse abacaxi.
Folha de São Paulo
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