No mês passado, a lei que estabeleceu a reforma psiquiátrica no Brasil completou dez anos. A regra mudou a estrutura do atendimento em saúde mental e também abriu uma cisão entre os especialistas da área.
De um lado, entidades como a Associação Brasileira de Psiquiatria criticam a redução do número de leitos em hospitais psiquiátricos e o que chamam de visão ideológica dos transtornos mentais. Do outro, o Ministério da Saúde e o movimento de Luta Antimanicomial, cujo dia é comemorado na quarta-feira, se levantam contra o tratamento nos hospitais, tido como desumano e ineficaz.
Com a reforma, o atendimento foi transferido dos hospitais psiquiátricos para a rede extra-hospitalar, em especial, os Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Em 2002, havia mais de 52 mil leitos em hospitais psiquiátricos no país. Hoje, segundo o Ministério da Saúde, são menos de 33 mil, mais a rede de 1.650 Caps e 571 residências terapêuticas.
Para Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, o saldo é negativo. "O doente foi despejado na rua."
Segundo ele, parte do problema foi transferido para as prisões. Silva estima que 12% da população carcerária tenha doença mental grave.
Para o psiquiatra Roberto Tykanori, coordenador técnico de saúde mental do ministério, a reforma ampliou o atendimento. "Antes, o acesso se resumia aos hospitais. Agora, a pessoa é atendida no ambiente em que vive, e não em um local isolado, segregador, cheio de desconhecidos."
"ERA TERRÍVEL"
Os Centros de Atenção Psicossocial já existiam antes da lei, mas passaram a ter um papel central no sistema. Nessas unidades, os pacientes são atendidos por médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais.
José Rinaldo da Silva, 37, frequenta o Caps da Vila Brasilândia, em São Paulo, desde o ano passado. Portador de esquizofrenia e epilepsia, ele conta que já morou na rua e passou por 49 internações em hospitais: "Juquery, Pinel, Charcot, Vera Cruz, João de Deus...", enumera.
No Caps, ele recebe atendimento médico e participa de oficinas de arte. "Aqui, a gente fica aliviado. Antes, se eu via uma ambulância, já saía correndo, com medo de me internarem", diz. Aos 18 anos, ele passou seis meses no hospital psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (Grande São Paulo).
"Era terrível. Tinha briga na fila da comida, e aí eles amarravam, davam choque." O técnico Luiz Franco de Godoy, 57, tem transtorno bipolar e frequenta o mesmo Caps. "Aqui não é clausura. Tenho a liberdade de sair e voltar quando preciso."
SURTO À NOITE
A maior parte dos Caps funciona só durante o dia. Na cidade de São Paulo, dos 65 Centros existentes, só seis têm atendimento 24 horas e leitos para internações curtas.
"Imagine um paciente que tem surto à noite. Ele acaba em prontos-socorros inadequados ou amarrado em casa", diz Valentim Gentil, professor de psiquiatria da Universidade São Paulo (USP).
Para o psiquiatra Emmanuel Fortes, do Conselho Federal da Medicina, não houve "reforma". "O que existe é uma atitude ideológica de negar a doença mental."
Fortes afirma que o fechamento de hospitais psiquiátricos extinguiu uma alternativa de tratamento especializado que os Caps não conseguem suprir.
Segundo ele, esses hospitais estão sendo sufocados por falta de recursos. Já na visão do psiquiatra Pedro Carneiro, do Instituto Sedes Sapientieae, médicos criticam a reforma porque com ela perderam o monopólio sobre o tratamento do doente mental.
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