Robocop foi o apelido da publicitária Julia Barroso durante toda a adolescência. A coluna torta, que começou deformar o corpo ainda em formação, não era apenas um problema estético. Dos 11 aos 15 anos o colete ortopédico era imprescindível como a roupa íntima.
Por conta do tratamento, que supostamente conteria o avanço da escoliose idiopática (o nome que a medicina dá ao seu problema de saúde), todas as blusas de Julia ganharam golas altas – das malhas de frio às camisetas sem mangas.
Embora soubesse a importância de suar o aparato, ela considerava desnecessário ostentar os ferros pelo corpo.
“Lidava bem com os apelidos. Ninguém falava pelas minhas costas. Era tudo muito aberto, direto e sem maldade, coisa de adolescente mesmo, uma época delicada. Não sofri o que hoje chamam de bullying. Tinha muitos amigos, não deixava de fazer nada, apenas morria de vergonha do colete. Passar o dia com ferros comprimindo os seios e empurrando o bumbum pra frente também não era nada confortável.”
Mal sabiam eles que o músico Kurt Cobain, líder da banda Nirvana, e a atriz, íncone de beleza no século 20, Elizabeth Taylor, também escondiam tal desvio postural do grande público.
Entraves
De difícil diagnóstico, e pouco reconhecida como uma doença séria, a escoliose é responsável por 89% dos problemas de coluna. Os casos mais graves, como os de Julia, são incomuns, mas não raros. A avaliação precoce ajuda a conter o avanço da deformidade, mas nem sempre evita a cirurgia.
“Como ela é silenciosa, ou seja, sem dor, a procura pelo atendimento médico acaba sendo tardia. O colete é um tratamento conservador, mas que pode resolver quando a curvatura é menor do que 45 graus e a criança ainda tem potencial de crescimento. Para esses pacientes, o colete é viável e pode impedir que o desvio progrida”, explica Luis Eduardo Carelli, cirurgião de coluna, chefe do centro de doenças da coluna do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), no Rio de Janeiro.
Um teste simples e prático – que poderia facilmente ser feito por pais e educadores nas escolas – sinaliza a possibilidade da doença e antecipa o tratamento.
“Basta encostar na parede e esticar as mãos até os pés. A deformidade, se houver, fica saliente, bem visível.”
Além da percepção tardia, o conflito entre ortopedistas e fisioterapeutas sobre a melhor conduta também atrapalha o controle da doença. Segundo Carelli, quando o grau está acima dos 45 logo na adolescência, não existe outra alternativa a não ser a cirurgia. Muitos pais, porém, resistem submeter seus filhos ao procedimento e optam por sessões de fisioterapia, acreditando na cura por meio de métodos alternativos e menos agressivos.
“Outro grande gargalo é a postura de muitos fisioterapeutas, que não têm conhecimento técnico e oferecem falsas esperanças. A fisioterapia não resolverá o problema, só prolongará o sofrimento."
Imprevisível
O sobrenome da doença já anuncia que não há explicação ou causa aparente. Idiopático significa “motivo desconhecido”. Segundo Carelli, a genética prevalece na incidência de casos, mas a medicina ainda não conseguiu identificar quais genes estão associados à presença da escoliose. Tanto as razões quanto a incidência em mulheres – quatro vezes maior do que nos homens – não são cientificamente esclarecidas.
“Supomos que a relação com o público feminino seja gerada pela questão hormonal, mas não há nada que comprove essa hipótese ainda.”
Irregularidades na coluna não necessariamente representam problemas à saúde. No caso de Julia, a angulação, que deveria permanecer entre 0 e 10 graus, bateu a casa dos 60 antes dela chegar à vida adulta. Aos 18 anos, após voltar de uma temporada em Londres – já livre do colete – a publicitária teve de se submeter a um procedimento cirúrgico. O desvio na lombar tinha regredido, mas na região torácica a doença avançou exageradamente.
“Eu estava bem, os cinco anos de colete tinham controlado parte da doença. Não me sentia torta. Mesmo assim, o grau quadruplicou e não tinha mais jeito”, recorda.
Doença elitista
A deformidade acomete tanto a região lombar quanto a torácica e provoca uma espécie de calosidade, capaz de deixar a postura em formato de S, explica o ortopedista do Into. O que incialmente sugere apenas um problema estético, com o passar do tempo, pode comprometer as funções do pulmão e coração, uma vez que a rotação crescente da coluna comprime tais órgãos.
A cirurgia é complexa, cara e exige, além de tecnologia de ponta, médicos especializados. No sistema público de saúde (SUS), a fila de espera chega a quatro anos – em média – tempo suficiente para o quadro evoluir e comprometer a vida dos pacientes.
É o caso de Edinete Almeida, de Catolé do Rocha, Paraíba. Aos nove anos, a coluna da menina já apresentava 65 graus de desvio. Hoje, aos 23, ela sofre com o avanço da doença gravíssima, que já comprometeu boa parte do pulmão. Sem recursos, ela aguarda desde os 15 anos na fila.
“Quanto mais acentuada a curvatura, que muitas vezes pode chegar a 100 graus, maiores são os riscos. A essa altura, o paciente já sofre muito com falta de ar. Precisamos operar com monitoramento da medula óssea, e esse tipo de equipamento não existe no SUS. O médico se expõe demais nessas cirurgias. O risco de sequela (a paralisia é o mais grave) é bem menor do que 1%. Mas para isso é preciso dispor de tecnologia e conhecimento humano.”
Segundo o ortopedista, a fila cresce a cada dia, pois são poucos os centros especializados para realizar a operação. De cada 100 mil habitantes, um precisa de cirurgia. No Into, no Rio de Janeiro, em média, sete pessoas passam pelo procedimento por mês.
“É o único no Estado que atende esses pacientes. Muitas pessoas de outras regiões do País nos procuram. A demanda é muito maior do que a oferta de serviço.”
O procedimento consiste em esticar a coluna e corrigi-la com parafusos e hastes. Como a medula óssea passa pelo meio espinha, qualquer movimento brusco pode provocar uma lesão no tecido nervoso, e comprometer os movimentos das pernas e braços.
“Quando a cirurgia é indicada, não há outra saída. Por maiores que sejam os riscos, é a solução para uma vida com qualidade.”
Nova vida
Durante o período do pós-operatório, Julia sentiu vontade de contar sua história. O diário feito diretamente da cama do hospital virou um livro. Antes do lançamento, porém, ela criou um blog para fomentar o debate sobre a doença e dialogar com outros pacientes.
“Sentia que a questão era tratada com total ignorância. As pessoas não sabem que a escoliose é uma doença grave, encaram com muito descaso. Consideram apenas um simples problema na coluna.”
Em pouco tempo na rede, o blog de tema único aproximou virtualmente milhares de desconhecidas que rapidamente se identificaram com o codinome: “A menina da coluna torta”.
Além de oferecer informações sobre tratamento, Julia se apresenta como curada e bem resolvida. Hoje, mãe de um menino de um ano e nove meses, e dona de uma empresa de comunicação, ela faz pouco caso das pequenas sequelas deixadas pela doença, revela que jogou o colete no lixo, e mostra que o tratamento, quando bem feito, garante uma vida absolutamente normal.
“Não tenho um corpo perfeito, sei que um seio é um pouco maior que o outro, mas não sofro com mais nada da escoliose. Levo uma vida plena, perfeita.”
Fonte IG
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