Talvez quem mais sofra com a abertura de vagas para médicos estrangeiros no Brasil sejam os vestibulandos de Medicina. Já estamos acostumados a escutar relatos de pessoas que passaram anos em cursinhos pré vestibulares para tentar uma vaga em Medicina e de pessoas que não chegaram lá por alguns pontinhos.
Já sabemos que a disputa acirrada para as vagas em Medicina mistura candidatos que têm vocação, candidatos em busca do status da profissão e candidatos em busca da carreira que, apesar de não ter sempre altos salários, ainda é a carreira que tem o maior rendimento médio no Brasil.
Isto cria um conflito claro entre 'meritocracia' e vocação, pois se é verdade que para cursar Medicina é necessário ter uma formação sólida na educação básica, também é verdade que vocação conta muito na qualidade dos médicos que formamos. Com notas de corte à beira do absurdo para que alunos entrem em Medicina, temos a realidade de que muitos médicos dominam a ciência, mas não dominam as humanidades necessárias para suprir a saúde da população brasileira de forma integral.
E aí milhares de brasileiros que sonham em ser médicos, inclusive muitos que moram nas regiões com menor densidade de médicos, se veem surpreendidos com a notícia de que o Brasil abrirá as portas para médicos de outros países. Não nego a necessidade, a curto prazo, de receber estes médicos estrangeiros. Negar isto seria também negar a necessidade de que tenhamos mais vagas nas Universidades Públicas para os cursos de Medicina. Para não precisarmos de mais médicos estrangeiros, precisamos sim ampliar, nem que seja por um período de 10 ou 20 anos, o número de vagas para Medicina. Isso deve ser feito de forma atrelada à uma carreira de estado nacional e à regras que só permitam trabalhar na Saúde Suplementar quem estiver na Saúde Pública.
Pesquisas demonstram que temos cerca de 1,8 médicos por mil habitantes no Brasil. Cuba tem mais de 6 por mil, o Uruguai tem quase 4 e a Argentina tem 3. O Ministério da Saúde defende que um número bom seria 2,5 por mil (mais 120 mil médicos do que temos hoje). O Conselho de Medicina se opõem a isto. Diz que, contando todos os postos de trabalho, e não o número de médicos, temos 3,3 médicos para cada mil.
Cerca de 1/3 dos médicos brasileiros possuem pelo menos 3 postos de trabalho e trabalham mais de 60 horas por semana, o que não podemos considerar normal e nem defensável. E o pior é quando comparamos, mesmo pela conta por postos de trabalho, o número de médicos em postos públicos e em privados.
Em postos privados (para as pessoas que possuem convênios médicos) temos 7,96 médicos para cada mil habitantes, enquanto em postos públicos temos 1,95 por mil. Isto quer dizer que 25% da população brasileira tem, à sua disposição, uma densidade de médicos 4 vezes maior do que aquelas que dependem exclusivamente do SUS. Mais de um terço dos médicos brasileiros não trabalha em nenhum posto público.
Chegamos ao absurdo de, na Bahia, termos 15,14 médico por mil habitantes em postos de trabalho privados e 1,25 em postos públicos. No Maranhão temos 0,68 médicos por mil habitantes registrados, enquanto no Distrito Federal temos 4,02. Além disso, em todos os estados, os médicos estão concentrados nas capitais e nos bairros de maior poder aquisitivo.
Também temos dado pouca atenção à questão das especializações enquanto política pública. O reduzido número de vagas faz com que somente 55% de nossos médicos sejam especialistas, e, dentre eles, há ainda a concentração em duas especialidades (pediatria e ginecologia possuem 25% dos especialistas). A pressão do sucesso financeiro faz com que tenhamos mais de 4 mil especialistas em cirurgia plástica enquanto temos pouco mais de 2 mil gastroenterologistas e menos de mil geriatras.
Não resta dúvida que o Brasil precisa de mais médicos, não nas capitais e nas empresas particulares, mas nas periferias, nas cidades do interior e nos estados distantes do eixo Sul/Sudeste/Distrito Federal. E para que a formação de mais médicos não aumente cada vez mais a concentração de médicos, ela precisa estar associada à políticas públicas que façam com que esses médicos formados não se acomodem nas cidades de melhor padrão de vida, ao mesmo tempo que o estado precisa criar condições de trabalho, de carreira e aumentar os investimentos públicos em saúde (hoje gasta-se 3,5% do PIB com Saúde Pública - razoável seria gastarmos cerca de 5,5%).
O saldo entre os que entram e os que saem da profissão hoje é de 6 mil médicos por ano. É a esta velocidade que aumenta o número de médicos no Brasil. Nesta velocidade, em 2026 ainda teríamos menos que 2 médicos por habitante. Para chegarmos a 2,5 médicos por habitante teríamos que formar, até lá, 210 mil médicos. Isso é mais de 100 mil além do que a velocidade atual permite.
Ressalto que o crescimento proporcional de médicos não pode ser comparado com o crescimento vegetativo do Brasil, como o Conselho tenta fazer. Ele tem que incluir outras análises como o aumento da expectativa de vida e o envelhecimento da população, a ampliação da saúde como direito e a inclusão de populações vulneráveis, a tendência mundial de aumento de gastos per capita com saúde privada e pública, a luta pela qualidade e ampliação dos gastos públicos com saúde, a descentralização, a compreensão da concepção de Saúde Integral, a ampliação do trabalho de promoção e de prevenção de Saúde, entre outros.
Hoje temos mais de 100 Universidades Públicas no Brasil. Um esforço concentrado, com o aumento e/ou criação de vagas nestas Universidades em cursos de Medicina, em seus próprios campus ou em cidades do interior, com investimento para transformar hospitais atuais em Hospitais Universitários, junto da implantação de um amplo programa de aumento de vagas nas especializações, principalmente nas de que o SUS mais necessita, faria com que, no médio prazo, a necessidade de importar médicos fosse colocada fora da agenda nacional.
Se cada uma destas Universidades (não me arrisco a propor que o setor privado faça isto pois suas faculdades de Medicina tem qualidade muito duvidável) criasse entre 50 e 100 novas vagas, teríamos mais de 7 mil novas vagas. Essas vagas extras poderiam durar por um período de 10 ou 15 anos e depois as Universidades voltariam aos patamares atuais. Alunos dispostos a fazer o curso, e com nota muito alta nos vestibulares e no Enem, o Brasil tem.
Medidas como a obrigação de que todas as pessoas que cursassem medicina, seja em escola pública ou privada, tivessem que ter ao menos um posto de trabalho no setor público, associado a uma única carreira de estado, com um único concurso nacional como porta de entrada, em que os alunos formados precisassem passar, necessariamente, por postos de trabalho no interior, na periferia, em estados distantes do eixo Sul/Sudeste/Distrito Federal, junto da ampliação da qualidade e dos gastos com saúde pública, podem até ser polêmicas entre médicos e entre alunos que já conseguiram uma vaga em Medicina, mas certamente teriam o apoio da maioria dos alunos que ficam bem perto de passar, mesmo com notas altas, e de todos que colocam a Saúde Pública na frente dos interesses privados.
Fonte Último Segundo
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