Sete mulheres nervosas aguardam em frente a um prédio de tijolinho em San
Francisco para passar por uma cirurgia.
O lugar não anuncia sua finalidade por muitas razões. Primeiro, a cirurgia em
questão diz respeito à sexualidade feminina. Em segundo lugar, ela vai contra
tradições de milhões de famílias pelo mundo --tradições brutais.
E há o caráter surreal das duas responsáveis pelo procedimento: a cirurgiã
alta e loira, que por acaso nasceu homem, e a animada terapeuta francesa que faz
parte da bizarra seita raeliana, surgida nos anos 1970, para a qual os humanos
foram criados por extraterrestres para vivenciarem a alegria plena.
Sala de cirurgia
Em pouco tempo, uma das primeiras pacientes, Zaria (nome fictício), 24, está
anestesiada. "O estado desta é péssimo", diz a cirurgiã.
Estudante de medicina, tatuada e com fartos cabelos negros, Zaria mais parece
uma boneca que uma mulher. Sua genitália é completamente lisa, tirando a
abertura. A cirurgiã ergue o bisturi e começa a cortar uma camada espessa de
tecido cicatrizado.
É a segunda vez na vida de Zaria que alguém corta suas partes mais íntimas. A
primeira foi em Serra Leoa, quando ela tinha 11 anos.
Parentes a levaram ao campo com o pretexto de fazer um passeio. Ali chegando,
ela foi posta numa fila com 20 outras garotas e forçada por mulheres mais velhas
a se deitar no chão. Seus lábios vaginais e seu clitóris foram cortados.
"Gritei tão alto que uma das mulheres sentou em cima da minha cabeça e quase
me sufocou enquanto estavam me cortando."
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, mais de 140 milhões de mulheres
no mundo sofrem os efeitos da mutilação genital, que é praticada no nordeste e
oeste da África e também em países como Iêmen e Indonésia.
Uma pequena fração delas vem procurando cirurgiões que propõem um esforço
radical de reabilitação.
A cirurgia tem o objetivo de facilitar as relações sexuais e o parto, além de
dar às mulheres capacidade de sentir prazer sexual com a recuperação do
clitóris, o que é controverso no meio médico.
Zaria se mudou para os EUA quando era adolescente. As feridas dos cortes que
ela sofreu formaram uma camada espessa de tecido cicatrizado que deixou sua
genitália insensível ao toque.
"Meu noivo terminou comigo dois meses atrás porque eu não queria transar. Ele
é de Serra Leoa também, então sabe sobre a mutilação e me deu apoio, mas no fim
ele foi embora com outra."
Chegando à clínica, Zaria e outras mulheres foram saudadas pela dupla que as
tinha incentivado a romper as barreiras dos tabus culturais.
A dupla
Uma delas é a cirurgiã Marci Bowers, especializada em cirurgias de troca de
sexo --ela própria nasceu homem e se tornou mulher. Duas vezes por ano, ela
libera sua agenda para fazer cirurgias gratuitas em vítimas de mutilação. As
pacientes pagam US$ 1.700 à clínica onde Bowers aluga uma sala. Até agora, ela
operou 50 mulheres.
A outra é a francesa Nadine Gary, residente em Las Vegas. O fato de pertencer
à seita raeliana a inspirou a ajudar vítimas da mutilação.
Fundada por Claude Vorilhon (Rael), que conta histórias absurdas sobre ter
sido levado numa nave alienígena para conhecer Moisés, Jesus e Buda, a seita
afirma que a vida na Terra foi criada por extraterrestres com a ajuda de
engenharia genética.
Os seguidores da seita fazem campanha pela paz mundial, mas também pelo
prazer sexual sem restrições.
A organização beneficente de Gary se chama Clitoraid e faz campanha pelo fim
da mutilação, além de promover cirurgias e oferecer terapia emocional e sexual.
Clitóris revelado
Depois de retirar o tecido cicatrizado, Bowers faz incisões profundas para
cortar ligamentos em volta da área onde ficava o clitóris de Zaria. Uma ponta de
tecido cor-de-rosa proeminente aflora.
Bowers afirma que, dois meses após a cirurgia, o tecido erétil pode funcionar
como clitóris, restaurando o potencial de sexo com prazer.
Em outubro, a cirurgiã vai a Burkina Fasso, na África, para celebrar a
abertura de um hospital pela Clitoraid para a realização da cirurgia.
Há controvérsia em relação à eficácia do método. O pioneiro da técnica é o
francês Pierre Foldes, que começou a realizá-la há duas décadas e já operou
3.000 mulheres. Um artigo publicado por ele no "Lancet" em 2012 diz que, das
mulheres que se consultaram um ano após a cirurgia, a maioria tinha orgasmos e
98% sentiram prazer.
Mas três médicas britânicas escreveram à revista dizendo que a operação é
"anatomicamente impossível".
Efua Dorkenoo, do grupo feminista Equality Now, pediu à Organização Mundial
da Saúde que inicie ensaios clínicos da cirurgia. Segundo ela, não se pode
desprezar os argumentos dos dois lados.
Depois da cirurgia, Zaria não para de falar. "Não fiz isso para me vingar de
meu ex-noivo nem para trazê-lo de volta. Isso não tem a ver com ele. Tem a ver
comigo."
The New York Times
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