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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Saúde no ar

Retornando de férias, entrei no avião e por casualidade encontrei quatro colegas médicos, cada qual com uma especialidade diferente: ortopedia, urologia, psiquiatria e ginecologia. Enquanto esperava os procedimentos habituais de decolagem, viajei mentalmente e tentei adivinhar qual colega seria o mais indicado para atender uma urgência em pleno vôo caso fosse requisitado pelo comandante.

Imaginei um passageiro de 60 anos de idade, obeso, que repentinamente passa a vomitar, não consegue se comunicar e dá sinais de perda de consciência. Imaginei ainda que existisse uma maleta de primeiros socorros com aparelho de pressão, estetoscópio, máscara de oxigênio e medicamentos contra hipertensão, náuseas e alguns analgésicos, todos com prazo de validade vencido.

É claro que a situação se presta para fazer anedotas de como se comportaria um profissional focado há mais de 20 anos em sua especialidade quando confrontado com o problema específico. Como reagiriam psiquiatras, ortopedistas, pediatras, dermatologistas? Todos tiveram uma formação semelhante, porém depois de tanto tempo, nem todos possuem condições de prestar um atendimento de emergência adequado. Também sou médico e trabalho com anestesiologia, mas propositadamente me liberei da condição de voluntário para ficar isento em minha análise.

Quando o avião atinge altura e velocidade máximas, apesar das aeronaves serem pressurizadas, a pressão atmosférica se equivale a uma pressão na altitude de 2500 metros, ou seja, é como se estivéssemos subindo as cordilheiras. A baixa pressão atmosférica associada à diminuição de oxigênio, causa distensão de todas as cavidades ocas do organismo. Ouvidos dão sinais de entupimento, estômago e intestinos se distendem podendo causar náuseas, doenças pulmonares prévias podem precipitar pneumotórax, suturas recentes podem romper.

Pessoas com doenças cardíacas podem não suportar essa diminuição de oxigênio e apresentar sintomas de isquemia cardíaca como palpitações, dor no peito e falta de ar. A umidade do ar também é reduzida, facilitando o ressecamento da pele e vias aéreas, podendo desencadear crises de asma em pacientes suscetíveis. Não quis aumentar demais a lista de problemas, mas poderia incluir também jet lag, cinetose, síndrome da classe econômica, desidratação...

Apesar de todos estes riscos, um estudo da British Airways demonstrou uma taxa de aproximadamente uma emergência médica para cada 10.000 passageiros. Trinta por cento dessas emergências necessitaram interrupção de vôo e assistência médica em solo. As estatísticas também demonstraram que 50% dos vôos interrompidos foram por problemas cardiológicos e que em 60 a 70 % dos casos existia um médico entre os passageiros.

No intuito de se proteger e garantir o bem estar de seus passageiros, por que as companhias aéreas não exigem um atestado e uma liberação médica para passageiros acima de determinada idade em vôos de longa duração? Além de estimular as pessoas a controlarem melhor sua saúde estariam abrindo um mercado de trabalho para a classe médica.

Semelhante ao consentimento informado, utilizado por médicos e instituições de saúde, por que as companhias aéreas não obrigam os passageiros a assinar um documento reconhecendo, assumindo e aceitando o fato de que estão embarcando em uma aeronave que não possui atendimento médico disponível apesar dos eventuais transtornos de saúde que possam ser desencadeados durante o vôo?

A medicina evoluiu de tal forma que o conhecimento é renovado no máximo a cada cinco anos. Tornou-se competitiva, tecnológica, segmentada, especializada, defensiva. Eu, por exemplo, não inicio um procedimento anestésico sem que existam as condições mínimas de segurança regidas pelo Conselho Federal de Medicina. Imagine como se sente um médico radiologista, especializado em interpretar imagens, quando no meio de suas férias vê-se intimado a atender e se envolver com uma emergência a bordo, não dispondo de treinamento nem condições adequadas.

O fato de possuir a titulação de médico e haver prestado o juramento de Hipócrates automaticamente obrigam-no a se oferecer para o atendimento? Diante de um quadro grave, sem equipamentos e medicações, a viagem pode se transformar em um filme de horror, forçando o médico a tomar medidas heróicas, por vezes sem muito tempo para raciocinar, levado muito mais pela emoção do que pelo bom senso.

Acredito que uma estratégia que atrairia a simpatia dos médicos seria o cadastro e treinamento para emergências durante vôos para aqueles que se dispusessem a ser parceiros da companhia aérea. Viajando a lazer ou profissionalmente, antes de embarcar, os médicos habilitados se identificariam, prontificando-se para auxiliar em casos de emergência. Em contrapartida, ganhariam um bônus, por exemplo, um cartão de fidelidade máxima. Não é a solução ideal, talvez existam impedimentos jurídicos, mas pelo menos profissionais seriam treinados, médicos não precisariam se constranger por não se sentirem capacitados e a companhia aérea mostraria seu interesse efetivo na saúde e bem estar de seus clientes. Pensei até em nomes para a campanha: "Saúde a bordo" ou "Saúde no ar".

Enquanto fazia estas conjecturas adormeci. Não sonhei com carneirinhos pulando cercas, mas com aviões decolando e aterrizando. Quando o quinquagésimo avião levantou vôo, acordei assustado, pois era o décimo milésimo passageiro a embarcar.

Boa viagem.

postado por Ildo Meyer

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