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sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cuidados de saúde num mundo enfermo

David Werner

Acho que muitos jovens entraram na faculdade com altos ideais humanitários. Realmente querem "servir ao povo", ajudar os necessitados, amenizar o sofrimento humano. Mas, ao longo do caminho, seu idealismo fica soterrado sob a carga de dívidas acumuladas, ambição crescente, orgulho, avareza, seguro contra imperícia, "distanciamento profissional" e longas horas de trabalho rotineiro. Uma vez formados, começaram a pensar que é seu direito ter mais e viver melhor do que a maioria de seus semelhantes. É claro que existem exceções brilhantes.

Bernard Shaw procurou desculpá-los dizendo: "Não é culpa dos médicos que a profissão médica seja um absurdo assassinato". Tais palavras parecem exageradas Entretanto, ao olharmos os custos humanos — em termos de vida e saúde — do nosso sistema de saúde privatizado, lucrativo, monopolizador, desigual e escandalosamente superfaturado, a denúncia de Shaw tem forte cunho de verdade. E, se considerarmos as tristes conseqüências causadas pela exportação desse nosso modelo médico-hospitalar elitista e extravagante para o Terceiro Mundo, verificamos que as acusações são justificadas.

Vejamos alguns fatos:
Sob constante pressão e ameaças do governo e da indústria dos Estados Unidos, a OMS e a UNICEF resignaram-se a tornar algumas medidas técnicas "tapa-buraco" para proporcionar uma "rede de segurança" aos grupos de maior risco. Pense:

de cada dois indivíduos no mundo inteiro,um jamais vê um profissional de saúde;
de cada três, um não tem água potável para beber;
de cada quatro crianças no mundo, uma é desnutrida.
No entanto, o mundo todo continuam a gastar mais de US$ 50 bilhões em armamentos a cada 3 semanas — quantia que poderia fornecer atenção primária para toda a população mundial durante um ano inteiro. E quando as Nações Unidas reúnem-se para discutir o impacto potencial de desarmamento sobre a saúde e o desenvolvimento, são boicotadas pelo governo dos Estados Unidos, com a alegação de que desarmamento e desenvolvimento não têm relação um com o outro.

Há necessidade de um novo enfoque
Já é hora de reavaliar o que significa saúde e rever as estratégias para a melhoria de bem-estar geral. Diversos "especialistas" — de médicos a educadores, economistas e ambientalistas — alegam que um ou outro dos seguintes fatores teria maior impacto sobre os níveis de saúde :

assistência médica;
estilo de vida;
tamanho da população e da família;
nível da alfabetização ou de "educação feminina";
fatores econômicos;
fatores ambientais;
estruturas de poder (quem manda).

1. Assistência médica
Muitas pessoas, principalmente os médicos, acreditavam que a assistência médica seria o fator decisivo para a saúde e que padrões médicos elevados com certeza melhorariam a saúde da população.

Para constatar que isso não é verdade, basta ver os Estados Unidos que, com certeza, têm o sistema de saúde mais caro do mundo. Têm os mais altos padrões de medicina, mas a saúde dos americanos está um último lugar entre os países industrializados.

A assistência médica certa não é o fator decisivo de uma população. Porém, levando em conta que, até certo ponto, o serviço médico tem influência sobre os padrões de saúde, o acesso ao serviço é bem mais importante do que padrões elevados. A preocupação profissional com os "padrões elevados" — quando usada para justificar os custos crescentes ou para combater os serviços comunitários informais e a autocura — pode transformar-se em um obstáculo à saúde.

2. Estilo de vida
Ultimamente, é dada muita importância ao "estilo de vida" como determinante da saúde. É óbvio que o estilo de vida influencia a saúde. Mas responsabilizar o estilo de vida é muito conveniente porque põe a culpa somente no indivíduo

Um bom exemplo é o fumo. Como sabemos, rapidamente está se tornando um grande problema nos países subdesenvolvidos. E quem é o responsável? Os fumantes? As indústrias de cigarro? O governo ou todo sistema social que coloca os lucros acima das pessoas?

Como o número de fumantes está diminuindo nos Estados Unidos, a industria do fumo tem se voltado para o Terceiro Mundo em busca de novo mercado. A propaganda é dirigida para mulheres e adolescentes. Para apoiar sua indústria, o governo americano ameaça com sanções econômicas os países pobres que se recusam a acabar com as barreiras contra a importação de fumo. Como resultado, o número de fumantes aumentou astronomicamente nos países do Terceiro Mundo. Segundo a OMS, isso poderá desencadear um pandemia de câncer. Além disso, estudos em comunidades pobres mostram um aumento de desnutrição e de mortalidade infantil quando o gasto com cigarros entra na renda familiar.

3. Tamanho da população e da família
O rápido aumento da população e as famílias grandes costumam ser citados como motivos da pobreza e da conseqüente falta de saúde, principalmente nos países pobres.

Entretanto, estudos indicam o contrário: famílias numerosas costumam ser o resultado da pobreza, não a causa. Para os pobres, os filhos constituem mão-de-obra barata e sustentarão os pais na velhice. Os programas de controle demográfico têm pouquíssimo impacto nos lugares onde a miséria é extrema. O que realmente permite que as famílias sejam menores é a distribuição mais justa dos recursos, assim como certas garantia sociais e econômicas básicas. Só então os pobres terão menos filhos. Cuba é um excelente exemplo do que estou afirmando. Cuba não forçou o controle da natalidade. Porém, como ofereceu assistência médica, educação, moradia, emprego e garantias para deficientes físicos e idosos, houve queda acentuada da taxa de crescimento populacional.

4. Alfabetização e educação feminina
A alfabetização feminina tem grande impacto na melhoria da saúde. A alfabetização amplia a troca de informação, desde instruções na bula do remédio até a literatura mais recente. Alfabetizar as mulheres é garantir-lhes maior oportunidade de defenderem a si e a seus filhos, em um ambiente onde ambos estão em desvantagens.

5. Fatores econômicos
A pobreza é claramente uma das causas latentes de doença e morte precoce. A mortalidade infantil nos países mais pobres é 10 a 20 vezes superior à dos países ricos. Em cada país, saúde e sobrevivência nas famílias pobres também são piores do que nas famílias ricas — seja nos Estados Unidos ou na Índia.

A distribuição de renda pode ser o fator mais importante para a saúde do que a riqueza (Produto Interno Bruto — PIB) de um país. Por exemplo, na Costa Rica, os indicadores são bem mais elevados do que no Brasil, embora sua renda per capita seja mais baixa. Porém, no Brasil, a distância entre ricos e pobres é muito maior do que na Costa Rica. Além disso, a Costa Rica tem distribuição mais equilibrada de serviços públicos, inclusive assistência médica, educação e moradia.

6. Fatores ambientais
A nova e gigantesca ameaça à saúde e mesmo à sobrevivência da humanidade é provocada pelo impacto devastador do homem sobre o meio ambiente. A devastação do meio ambiente — desmatamentos, desertificação, efeito estufa, destruição da camada de ozônio, rebaixamento dos lençóis de água, depósito de lixo tóxico e nuclear, destruição do solo, chuva ácida, envenenamento de rios, lagos e oceanos e o esgotamento de recursos não renováveis — tem origem no desenvolvimento econômico baseado em explorar, denominar e "crescer" a todo custo.

7. Estruturas de poder da sociedade
A indústria de cigarros é apenas uma das inúmeras que colocam o crescimento econômico acima da saúde da humanidade e do planeta. Vejamos algumas dessas grandes "indústrias assassinas":

fumo;
bebidas alcoólicas;
drogas;
agrotóxicos;
produtos farmacêuticos desnecessários, perigosos e superfaturados;
armas e equipamentos bélicos.
Todas são indústrias enormes, poderosas e extremamente lucrativas. O seu custo, em termos de saúde e vidas humanas, é incalculável. A resistência — física, econômica, mental e social —, enfraquecida por essas empresas inescrupulosas, aumenta o impacto de infecção e da desnutrição.

O governo dos Estados Unidos defende os interesses de cada uma dessas indústrias à custo da saúde, da qualidade de vida e, freqüentemente, da sobrevivência de milhões de seres humanos. A saúde é determinada muito mais por fatores políticos e sociais — por quem tem poder — do que pelos serviços de saúde.

O que podemos fazer?
Como futuros médicos, vocês podem estar pensando que nada disso lhes dizem respeito. Afinal, as escolas de medicina preparam vocês para serem "pessoal da doença" e não "pessoal de saúde" e o futuro promete doenças mais do que suficientes para mantê-los ocupados. Minha opinião é que, no mundo atual tão doente, o grande desafio para um médico é tornar-se um "promotor de saúde da comunidade" no sentido mais amplo. Para que os futuros médicos sejam mais bem preparados para enfrentar os problemas atuais de saúde, há necessidade de mudanças profundas em nossas faculdades de medicina. Os médicos precisam aprender a trabalhar com a comunidade inteira, não apenas com indivíduos doentes. Precisam aprender compartilhar seus conhecimentos, a desmistificar sua habilidades.

Gostaria de mencionar dois "exemplos" que poderiam inspirá-los a tornar-se promotores de saúde e de mudança — Carlos Biro, do México e Zufrullah Chowdhury, de Bangladesh. Ambos trabalham em comunidades e ambos conseguiram uma transformação da formação médica em seus países.

Na década de 60, Carlos Biro era um endocrinologista famoso e o maior especialista em lúpus eritematoso do México. Um dia, ele se perguntou "por que sou especialista de uma doença rara, quando as principais causas de morte são desnutrição e diarréia infantil?".

Carlos tirou licença na faculdade onde ensinava e viajou durante um ano por todo o México, querendo sentir os principais problemas de saúde. Acabou em Netzahualcoyotl, uma enorme favela na Cidade do México. Havia apenas um ambulatório, não havia eletricidade ou água encanada e apenas duas ruas pavimentadas. Mais da metade de população era desempregada.

Carlos viu que o ensino médico não preparava absolutamente os alunos para essa realidade. Decidiu tentar uma nova abordagem. Transferiu 36 alunos do primeiro ano para Netzahualcoyotl. A sala de aula era a favela.

No primeiro dia de aula, cada aluno visitou 15 famílias para conhecer os principais problemas de saúde. No segundo dia, discutiram o que tinham visto. No terceiro e quarto dias fizera o mesmo com outras 15 famílias. Continuaram a visitar essas 30 famílias todas as semanas. Assim, cada estudante tornou-se o "conselheiro de saúde", com cerca de 300 pessoas. Isso significa que, durante todo seu primeiro ano de faculdade, os 36 alunos fizeram visitas regulares a aproximadamente 10 mil pessoas carentes.

Todo o currículo do primeiro ano foi elaborado segundo os tópicos que os alunos acharam necessários para ajudarem as famílias a resolverem seus problemas de saúde. Matérias comuns, como anatomia e farmacologia, foram introduzidas apenas para facilitar a compreensão dos problemas do dia-a-dia. O ensino tornou-se prático e orientado pelos problemas reais. Para espanto geral, os alunos de Biro tiraram notas um pouco acima daqueles que ficaram o ano inteiro estudando no campus universitário. E o impacto da experiência sobre aqueles 36 alunos foi tão grande que, após a formatura, mais da metade foi trabalhar em comunidades carentes.

Hoje, mais de 20 anos após a audaciosa experiência, o "Plano 36", como se tornou conhecido, continua sendo uma opção que desafia os alunos do primeiro ano de medicina.

Biro costuma brincar que suas principais metas para o ensino médico são "desprofissionalizar" a medicina e colocar o controle sobre a saúde nas mãos do povo.

Zafrullah Chowdhury acabava de se formar em medicina, em Bangladesh, quando aderiu à luta pela independência do Pasquistão. Devido à enorme falta de pessoal médico, ele começou a treinar "médicos descalços". Após a independência, continuou a trabalhar com a população carente.

A equipe de agentes de saúde formada por Zafrullah ensinou as pessoas a procurarem as causas básicas de seus problemas. Muitas vezes, isso a levava a confrontos com a lei local — as mulheres, principalmente, começaram a organizar-se e a exigir seus direitos.

Mas Zafrullah não parou aí. Indignado com a avalanche de medicamentos irracionais e superfaturados que os laboratórios farmacêuticos multinacionais empurravam para o seu país, fundou a "Companhia Farmacêutica do Povo", para fabricar medicamentos essenciais baratos. A maioria das operárias eram mães solteiras pobres, que primeiro eram alfabetizadas e recebiam educação em higiene.

Os laboratórios multinacionais fizeram de tudo para fechar a farmácia do povo. Ficaram furiosos quando Zafrullah convenceu o Ministério da Saúde a adotar uma política de medicamentos essenciais e proibir a importação de remédios desnecessários e superfaturados. Ameaçaram cortar todo o suprimento de medicamentos e o governo dos Estados Unidos ameaçou com sanções econômicas, mas o Ministério da Saúde continuou firme. A corajosa postura de Bangladesh, incentivou outros países a fazerem o mesmo.

Carlos Biro e Zafrullah Chowdhury compreenderam o que significa lutar pela saúde. Se vocês querem realmente fazer alguma coisa para melhorar e preservar a saúde da população, precisam ir muito além da medicina ou mesmo da "saúde pública". Vocês precisam tomar partido e arriscar-se. Precisam tomar posições firmes diante das questões que determinam a saúde e a sobrevivência.
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D. Werner é diretor de HealthWrights, Workgroup for People's Healths and Rights e coordenador regional do Conselho Internacional de Saúde dos Povos para a América do Norte na Califórnia. Ele apresentou esta palestra em 1990, durante o 40º encontro anual da Associação Americana de Estudantes de Medicina, Arlington, VA, EUA.

"A maioria das faculdades de medicina do mundo
prepara o médico não para a saúde da população, mas para se dedicar a um exercício da medicina, que é cego para tudo que não seja a doença e a tecnologia para tratar dela"

Dr. Halfdan Mahler
Ex-Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde

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