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sábado, 11 de outubro de 2014

Não foi Hipócrates quem escreveu o Juramento de Hipócrates. Então porque ele é considerado o pai da medicina?

Hipócrates é amplamente considerado o pai da medicina
 
O mais famoso dos tratados vinculados ao seu nome é o Juramento de Hipócrates, muitas vezes lido por médicos na sua formatura, conforme eles prometem manter os padrões éticos em suas profissões, como não praticar aborto nem eutanásia, não deixar escapar segredos de seus pacientes, nem ter relações sexuais com eles, sejam homens ou mulheres, livres ou escravos.
 
Só que, na verdade, o Juramento de Hipócrates não tem nada a ver com Hipócrates. Então por que tem sido ligado ao seu nome?
 
O médico grego
Hipócrates nasceu numa ilha da Grécia, Cos, que fica perto da Turquia, em algum momento antes de 460 aC, provavelmente. Ele era um asclepíade, isto é, membro de uma família que durante várias gerações praticara os cuidados em saúde (esse termo também poderia significar que sua família reivindicava ser descendente do deus da medicina, Asclépio).
 
Fora isso, os dados sobre sua vida são incertos ou pouco confiáveis. O filósofo Platão foi quem nos deu um dos únicos relatos quase contemporâneos ao real Hipócrates. Segundo o pensador, ele era conhecido bem o suficiente como médico no mundo antigo, e ensinava medicina por uma taxa.
No entanto, não está claro quais eram suas crenças acerca da medicina.
 
Não apenas o tal juramento, como os cerca de 60 outros tratados gregos antigos em medicina que são chamados de “Tratados Hipocráticos”, são todos anônimos. Eles foram escritos ao longo de muitos séculos em diferentes dialetos gregos, e expressam ideias diferentes sobre o corpo e a cura.
 
Então, clássicos eruditos hoje afirmam claramente que eles não podem ter sido todos escritos por um único homem.
 
Pura invenção
Qualquer coisa que você leia sobre Hipócrates é geralmente especulação. Não há datas registradas sobre sua existência, embora as referências de Platão o coloquem vivendo cerca de 430 aC. Datas de nascimento e morte definitivas, porém, são fruto da imaginação de alguém.
 
Hipócrates é um exemplo extremo de nosso desejo humano de contar histórias e estabelecer fundadores. Diferentes facetas dos sobreviventes tratados médicos da Grécia antiga foram fundidos para criar a sua personalidade e, mais tarde, uma biografia completa.
 
Nós imaginamos Hipócrates como uma pessoa carinhosa e atenta simplesmente porque alguns tratados antigos gregos falam em “observar pacientes com muito cuidado”. Outro tratado fala sobre convulsões e como elas não vêm de deuses, mas sim de um desequilíbrio no corpo, então pensamos em Hipócrates como científico, como alguém que rejeitava o supersticioso. E como um dos tratados sobreviventes é o Juramento de Hipócrates, o antigo médico ainda é ligado a altos padrões morais e éticos.
 
Problema? Isso é o que queríamos que ele fosse, não o que ele foi. Quem Hipócrates realmente foi e o que pensava, não sabemos.
 
Ligar todos esses documentos antigos gregos muito diferentes e amarrá-los com o nome de Hipócrates tem sido comum desde apenas alguns séculos depois que ele viveu. Talvez isso nos faça sentir melhor: ter um médico reconhecido por trás das origens da medicina e da ética médica é certamente melhor do que um comitê sem rosto. Aliás, não apenas qualquer médico, mas sim uma figura idealizada, perfeita, experiente e carinhosa.
 
O que o conteúdo do juramento significa
A maioria das linhas do juramento nem sequer falam sobre o tratamento de pacientes. Em vez disso, dizem que médicos devem ensinar os filhos uns dos outros sem cobrar nada, e cuidar de seus antigos professores. Qualquer que seja o grupo de médicos antigos que inventou esse documento, a sua primeira preocupação não era com ética nem com os pacientes, mas sim com a sua identidade como um grupo (meio elitista para os dias de hoje, inclusive).
 
Até mesmo os famosos versos sobre a eutanásia e o aborto são muito menos simples do que se espera. Na verdade, não há proibição no juramento sobre a eutanásia no sentido moderno da palavra, de uma opção de morte quando uma pessoa está sofrendo de uma doença incurável.
 
A palavra vem do grego que significa “boa morte”, mas, para um grego antigo, uma boa morte era a de um jovem na flor da idade que morria no campo de batalha. Em vez disso, o juramento sugere uma preocupação muito mais ampla em manter o controle sobre medicamentos potencialmente fatais, em vez de entregá-los aos que poderiam abusar deles.
 
Quanto ao aborto, o juramento diz: “Eu não vou dar um pessário abortivo”. O verbo “dar” é um dos mais comuns do mundo, bastante aberto a interpretação. Será que, nesse contexto, significa apenas “entregar”, ou o termo mais técnico “administrar”? A frase também deixa em aberto a possibilidade de existir outra droga abortiva que iria por outro caminho – por via oral, por exemplo -, que por sua vez poderia ser administrada por um médico. Talvez a verdadeira preocupação do juramento era que o pessário (inserido na vagina) era um modo particularmente potente de administração, ou ainda em não deixar que as drogas saíssem das mãos do médico (não dar aos pacientes), para que as pessoas não pudessem abusar delas.
 
E quanto a “não fazer sexo com pacientes de ambos os sexos”, isso na verdade levanta a possibilidade de que o juramento não era uma parte normal da medicina antiga, mas sim um documento muito especial para ser levado em conta em algumas situações incomuns. Talvez os médicos estavam fazendo justamente aquilo, e os pacientes haviam perdido completamente a fé naqueles que alegavam que poderiam curá-los.
 
Ao longo da história da medicina, “inventamos” o caráter de Hipócrates para expressar como acreditamos que os médicos, ou a própria medicina, deveriam ser. Até mesmo o juramento foi editado para se adaptar a diferentes sociedades. Mas será que já não chegou a hora de falar sobre a medicina sem precisar ressuscitar uma figura obscura do passado?
 
Science20 / Hypescience

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