Pessoas com lesões na medula óssea sonham em recuperar os movimentos e a sensibilidade. Uma técnica revelada nesta quinta-feira (6/10) na revista Nature aponta que esse desejo é possível — e está cada vez mais perto de se realizar.
Um grupo de pesquisadores liderado pelo brasileiro Miguel Nicolelis mostrou que o cérebro pode voltar a registrar estímulos captados em uma realidade virtual. Em um experimento com macacos, os animais incorporaram um avatar de seus braços como parte do corpo real e registraram diferentes texturas, tudo utilizando apenas o pensamento. É o tato artificial, que Nicolelis chamou ontem de “sexto sentido” em seu perfil no Twitter. O próximo passo é testar a tecnologia em humanos.
Nicolelis estuda, há anos, as chamadas interfaces cérebro-máquina, que permitem o controle de artefatos robóticos a partir de pulsos elétricos enviados pelo cérebro. Em um estudo anterior, uma macaca chegou a mover um braço mecânico a mil quilômetros de distância, por meio de comandos que saíram de sua mente. Recentemente, o neurocientista e sua equipe quiseram ampliar a proposta. “Começamos a ver como funciona o diálogo com o cérebro, como os animais tomam decisões baseados em informações elétricas”, contou o pesquisador, em entrevista ao Correio. “Então, chegamos à conclusão de que era possível criar a interface cérebro-máquina-cérebro, que faz o caminho de ida e volta sem a interferência do corpo.”
Para testar isso em primatas, Nicolelis e outros cientistas da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e da Escola Politécnica de Lausanne, na Suíça, implantaram chips em duas áreas do cérebro dos animais (veja infografia). As neuropróteses — feitas com microfilamentos mais finos que um fio de cabelo — foram colocadas no córtex motor primário, responsável pela geração do sinal elétrico que cria movimentos nos braços, e no córtex somestésico, região vizinha, que recebe o retorno tátil enviado pelos milhões de sensores espalhados na pele.
Depois que os macacos se recuperaram da cirurgia, começou a chamada fase de aprendizado. “Para treinar primatas, precisamos começar com coisas simples. Nessa etapa, eles usavam um joysitck para mover um braço virtual na tela”, detalha Nicolelis. Nesse jogo, o animal tinha que passar o avatar sobre alguns alvos; cada um disparava uma vibração diferente, que era devolvida para o chip instalado no córtex somestésico. As vibrações correspondiam às texturas dos objetos: uma, mais fina, era definida por um disparo em frequência alta; outra, mais grossa, por uma frequência baixa. Apenas um dos alvos era o correto, aquele que gerava a recompensa para o animal. Assim, o objetivo do macaco era tatear com seu braço virtual até encontrar o tambor certo.
Com o tempo, os cientistas retiraram o joystick de cena. “Como não dá para instruir macacos verbalmente, você precisa mostrar, aos poucos, o que eles devem fazer”, diz Nicolelis. Nesse caso, a ideia era indicar aos primatas que eles poderiam controlar o braço virtual apenas com a atividade cerebral. “O que nos surpreendeu foi a velocidade de aprendizado. Em períodos que variaram de quatro a nove dias, eles passaram a entender o esquema e reagiram como se o braço virtual fosse deles”, conta o neurocientista. “A performance é muito boa, parecida com a que eles têm usando os próprios dedos.”
Na verdade, o avatar dos macacos gerou sensações com mais rapidez do que se eles estivessem utilizando o braço de carne e osso. Isso porque o sinal registrado pelos sensores humanos “viaja” até o cérebro a uma velocidade de cerca de 120 metros por segundo. “Demora entre 50 e 60 milissegundos para que o córtex somestésico receba a informação”, diz Nicolelis. Já no experimento, o sinal da textura dos tambores vai direto para o cérebro, na velocidade da tensão elétrica, igual à velocidade da luz (de quase 300 milhões de metros por segundo).
“A matriz de filamentos da neuroprótese é conectada a um chip, que processa e transmite os sinais elétricos do cérebro via wireless”, ressalta o neurocientista brasileiro. “Temos um microprocessador que permite 600 canais de transmissão, o que aumenta as possibilidades de utilização em pacientes, uma vez que não há nenhum cabo conectado ao sistema.” A ideia de Nicolelis é que a tecnologia esteja funcionando até a Copa do Mundo de 2014. Na abertura do evento, um garoto brasileiro paraplégico daria o pontapé inicial do jogo, auxiliado por um exoesqueleto. Além de se movimentar, o menino também sentiria a bola em seus pés.
Desafio
O projeto, batizado de Walk Again Project, concretizaria todas as expectativas de Nicolelis e de outros milhares de neurocientistas pelo mundo. O trabalho, porém, é o início de uma longa caminhada. “Cada pessoa tem um comportamento cortical diferente; sistemas assim precisam de um estudo individual detalhado”, afirma o pesquisador Henrique Rezende, do Núcleo de Pesquisas em Engenharia Biomédica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Nós tentamos encontrar padrões genéricos, mas isso é difícil. Ainda esbarramos muito na questão econômica”, lamenta. Rezende e seus colegas também estudam tecnologias que devolvam movimentos para pessoas com lesões na medula, mas o foco do grupo mineiro é em técnicas não invasivas (leia Para saber mais).
Para se ter uma ideia da complexidade, o tipo de lesão sofrida pelo paciente influencia a forma de tratar o problema. Há pessoas que perderam a mobilidade muscular, mas o sinal cerebral consegue chegar ao local. Em outros casos, a via de transmissão está interrompida em determinada área. De qualquer forma, estudos sobre o comportamento da mente são essenciais. “A maior contribuição não é a interface cérebro-máquina-cérebro, mas sim o conhecimento sobre a parte do corpo mais misteriosa para a ciência”, aponta Rezende. “Essas investigações podem ajudar no desenvolvimento de tratamentos para doenças como o Alzheimer e o Parkinson, que destroem as células nervosas.”
Macaca robótica
A primeira experiência de Nicolelis com primatas e robôs foi relatada em 2003. O cientista e seus colegas da Universidade de Duke treinaram o animal com um joystick e, mais tarde, fizeram com que sua atividade cerebral movesse um braço mecânico instalado em outra cidade. Cinco anos depois, a macaca repetiu o feito, mas com um robô inteiro que estava no Japão.
Fonte Correio Braziliense
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