Brasília – Passados mais de 20 anos da instituição do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), o Brasil ainda não cumpre integralmente a determinação para
que profissionais de saúde notifiquem casos suspeitos ou confirmados de
violência contra crianças e adolescentes.
Estudos científicos de universidades
brasileiras a que a Agência Brasil teve acesso apontam que, em
média, seis em cada dez profissionais que identificam violações durante
atendimento se omitem e não encaminham a denúncia aos órgãos competentes,
contrariando o que está previsto na lei.
Para quem atende no Sistema Único de Saúde (SUS), a obrigatoriedade foi
reforçada por portaria do Ministério da Saúde, publicada em março de 2001.
Dados da pesquisa feita pelo odontólogo João Luís da Silva, do Programa de
Pós-Graduação Integrado em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), indicam que 86% dos profissionais entrevistados já suspeitaram de
violência física, sexual, psicológica e negligência, mas somente 36,4% deles
notificaram o caso. O principal motivo para a omissão foi o medo de retaliação
por parte dos agressores (32%), já que, segundo o pesquisador, a falta de sigilo
possibilita a identificação do profissional notificador.
Para fazer o estudo, que resultou na dissertação de mestrado Entre as
Amarras do Medo e o Dever Sociossanitário: notificação da violência contra
crianças e adolescentes sob a perspectiva de rede na atenção primária,
defendida no ano passado, Silva entrevistou 107 dos 120 profissionais de saúde
de nível superior, atuantes na estratégia Saúde da Família em Olinda (PE).
Fonte: Entre as Amarras do Medo e o Dever Sociossanitário: notificação da
violência contra crianças e adolescentes sob a perspectiva de rede na atenção
primária (UFPE)
Na avaliação de João Luís da Silva, que é especialista em saúde pública, o ideal é que a notificação seja encaminhada não apenas pelo profissional de saúde, mas por uma comissão intersetorial de modo a dificultar ou impedir a identificação do responsável pela denúncia.
“A alternativa é fazer com que a saúde não trabalhe sozinha, mas
intersetorialmente, em uma ação integrada com profissionais de educação, de
assistência social e do próprio conselho tutelar. Desse modo, lançaríamos mão de
diversos olhares e o profissional da saúde ficaria mais confiante”, disse.
Em dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Psiquiatria da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a psicóloga Elisa Meireles também
ressalta o medo de represálias e a falta de resguardo nas unidades de saúde como
fatores apresentados pelos profissionais para justificar o descumprimento da
obrigação legal de notificar os casos.
O trabalho, baseado na investigação em duas unidades básicas de Saúde na
região metropolitana de São Paulo, foi publicado, em 2011, na revista científica
Saúde e Sociedade.
“Houve casos que, ao justificar a omissão, os profissionais argumentaram que
nem o conselho tutelar consegue ter acesso à família agressora”, comentou a
pesquisadora. Ela ressaltou que trechos de depoimentos coletados durante a
pesquisa, concluída em 2007, comprovam o sentimento de ameaça, velada ou não,
por parte dos profissionais.
É o caso de uma agente de saúde entrevista pela psicóloga. “A gente também
não pode dizer: 'guarda civil! vem cá! a mulher tá matando a criança!' A gente
não pode fazer isso, porque depois pode sobrar para a gente, porque a gente está
todo dia lá”, disse a agente, segundo a publicação.
“Aqui tem muita gente violenta, a gente fica com muito medo de o pessoal vir
e se vingar da gente (...) essa parte também tem que ter muito cuidado, às vezes
não é só denunciar, tem que denunciar, claro, mas tem que ser denúncia anônima”,
disse uma enfermeira, também segundo o estudo.
A coordenadora do grupo de pesquisa sobre violência da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), Cléa Adas Saliba Garbin, acredita que a situação não tenha
sofrido alterações significativas desde que a pesquisa de Elisa Meireles foi
concluída.
A professora iniciou no mês passado a segunda fase de um estudo para
investigar os motivos que levam os profissionais de saúde a não notificar os
casos de violência. Cléa Garbin também quer dimensionar o impacto do medo de
represálias no número de notificações.
“Ainda não temos números, mas, durante as visitas a campo, ouvimos diversos
relatos de técnicos e auxiliares de enfermagem, dentistas e agentes comunitários
que demonstram medo real de represália por parte da família, do agressor ou da
comunidade”, destacou.
Segundo dados preliminares, antecipados à Agência Brasil,
43% dos profissionais da estratégia saúde da família entrevistados disseram já
ter suspeitado de casos de violência contra crianças e adolescentes. Entre eles,
61% não tomaram nenhuma atitude diante da suspeita, nem mesmo a notificação
obrigatória. Além disso, mais da metade (59,2%) negou conhecer a existência de
normas relativas à notificação. Até agora, foram ouvidos 135 profissionais de
saúde em um município de grande porte no estado de São Paulo.
“Para a saúde pública é um problema grave, porque a omissão em comunicar os
casos atendidos leva a um conhecimento precário da dimensão da violência no
Brasil e do seu perfil epidemiológico. Isso compromete a implementação de
políticas públicas eficazes e bem direcionadas”, disse ela, que vai analisar,
pelo menos, 40 municípios de São Paulo nos próximos dois anos.
Segundo o ECA, são crianças os cidadãos que têm até 12 anos incompletos.
Aqueles com idade entre 12 e 18 anos são adolescentes.
De acordo com a coordenadora de Vigilância e Prevenção de Violências e
Acidentes do Ministério da Saúde, Marta Silva, a notificação de violências é uma
prioridade na agenda da pasta, que tem investido na capacitação e sensibilização
dos profissionais sobre a importância desse registro.
Ela enfatizou que, como resultado dessas medidas, o número de notificações de
violência contra crianças e adolescentes com até 19 anos, por profissionais de
saúde, mais que triplicou em três anos, passando de 18.570, em 2009, para
67.097, em 2012. Considerando todos os casos de violência, o número de
notificações quadruplicou, ao subir de 40 mil para 163 mil no mesmo período.
No fim do ano passado, ainda segundo Marta Silva, o ministério repassou R$ 31
milhões a 857 entes federados – estados e municípios - para serem utilizados em
ações de prevenção de violências, como capacitação de profissionais,
qualificação de serviços de atendimento e produção de materiais educativos.
A coordenadora do Ministério da Saúde acrescentou que a pasta deve lançar, no
segundo semestre deste ano, uma estratégia intersetorial para integrar os dados relativos ao
atendimento a vítimas de violência em todo o país. Por meio de uma ficha de
notificação padronizada, serão encaminhadas ao ministério informações produzidas
por todos os órgãos considerados portas de entrada para mulheres, idosos,
crianças e adolescentes que tenham sofrido agressões e abusos. Os números serão
consolidados pela pasta.
Fonte Agência Brasil
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