Um caso está dividindo a opinião pública na Irlanda e trazendo à tona uma discussão sobre aborto no país onde a lei é uma das mais restritivas da Europa. Trata-se de uma mulher grávida, de cerca de 20 anos, com morte cerebral declarada. Seus pais expressaram a vontade de desligar os aparelhos que a mantêm viva, o que levaria ao aborto do feto de 17 semanas. Mas os médicos se recusam a atender ao pedido, baseando-se em uma emenda constitucional na legislação que deixa em pé de igualdade as grávidas e seus bebês em gestação. Ou seja, a lei garantiria ao feto o direito a continuar vivo, mesmo após a morte de sua mãe.
A história ganhou repercussão no país e no mundo, levantando um debate sobre bioética. O primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, já descartou a possibilidade de um novo referendo ou qualquer mudança na legislação, enquanto o ministro da Saúde, Leo Varadkar, admite que o tema é delicado. Ano passado, a Irlanda aprovou uma nova lei de aborto, permitindo a intervenção apenas quando a gravidez representa risco “real e substancial para a vida da mulher”. Na época, a discussão provocou uma série de protestos, principalmente por grupos religiosos, já que a Irlanda tem tradição cristã.
— Não acredito que deveríamos estar olhando para a questão da mudança constitucional agora — afirmou Kenny, segundo o “Irish Independent”, jornal que tornou o caso público.
A declaração do primeiro-ministro ocorreu após o ministro da Saúde afirmar que a Constituição era “muito restritiva” e com “efeito inibidor” sobre os médicos. Leo Varadkar ainda acrescentou:
— É importante dar à família e aos médicos, que estão enfrentando dilemas enormes, todo o apoio que pudermos — afirmou Varadkar. — Acho que o central neste debate é, em primeiro lugar, termos compaixão em nossas mentes, evitar certezas absolutas e pressa para tomar qualquer decisão, aliás, sobre qualquer coisa, até vermos como a situação vai se desenvolver.
A emenda em questão afirma: “O Estado reconhece o direito à vida do nascituro e, com o devido respeito ao direito à vida da mãe, mantém as garantias em suas leis de respeitar, e, na medida do possível, defender e reivindicar esse direito”.
Pais querem processar hospital de Dublin
A mulher, cujo nome não foi divulgado, morreu por após sofrer uma lesão cerebral devido a um coágulo de sangue, em Dublin, há duas semanas. Enquanto os pais cogitam iniciar um processo contra o hospital, seus administradores buscam respaldo jurídico para decidir o que fazer. Se o caso chegar a um tribunal, o governo provavelmente terá que designar um advogado para defender o feto contra seus próprios avós.
Especialista em direito médico irlandês, Adam McAuley disse ao “Irish Independent” que o mais provável é que o Alto Tribunal de Dublin tome a decisão.
— A lei não é clara, e quando há conflito, a questão terá de vir perante o tribunal — disse.
O caso é raro, mas não é único. Em janeiro deste ano, uma história parecida ganhou destaque internacional: Marlise Machado Munoz, de 33 anos, da cidade de Fort Worth, no Texas, entrou em colapso por uma embolia pulmonar no dia 25 de novembro e foi declarada clinicamente morta pouco tempo depois.
Segundo o marido, Erick Munoz, ela tinha expressado em vida que não desejava ser mantida viva artificialmente, caso estivesse claro que ela não poderia se recuperar. Mas como Marlise estava grávida de 14 semanas, seu marido e sua família foram impedidos de desligar os aparelhos. A família processou o hospital que insistia em mantê-la viva, e um juiz decidiu em favor do desligamento dos equipamentos, justificando que o bebê corria riscos de desenvolver problemas cardíacos.
Embora inusitado, é possível que a gravidez seja levada adiante mesmo com a morte cerebral da mãe declarada. É o que explica o obstetra Fernando Maia, chefe do Setor de Medicina Fetal do Instituto Nacional de Saúde da Mulher Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
— Não existe nenhum impeditivo, desde que suas funções sejam preservadas, mantenham-se os sistemas circulatório e respiratório e que ela receba a nutrição necessária — explicou Maia, admitindo que só viu situações como essa nas salas de aula. — Não conheço nenhum caso. Até porque, na maioria das vezes, a morte cerebral ocorre por doenças ou traumas violentos, que acabam gerando outros problemas.
Membro da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Rio de Janeiro, Antônio Paulo Barça, também bacharel em Direito, concorda:
— À luz da ciência, é possível levar a gestação ao fim, mantendo-a em respirador, nutrida e hidratada — afirma Barça. — Mas, por outros pontos de vista, é um caso muito controverso.
“Mas, apenas porque a ciência permite o prosseguimento da gestação, a medida deve ser tomada?” A questão é colocada pelo coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB e membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, Volnei Garrafa:
— Ao final, o que deveria ser levado em conta é a autonomia da família para decidir, e defendo que eles recorram à Justiça — afirma Garrafa, que traz a discussão para o Brasil. — Há um vazio legislativo no campo biotécnico científico por inexistência de um Conselho Nacional de Bioética no país. A bioética prevê o princípio da autonomia, e ela não pode ser religiosa ou conservadora, como é o Estado da Irlanda e também o brasileiro.
No Brasil, a legislação hoje permite o aborto apenas em três situações: estupro, perigo de vida para a mãe e diagnóstico de feto anencéfalo (sem cérebro). Essa última foi definida em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, na decisão, pontuou que o aborto é crime, a menos que ele represente um atentado contra a dignidade da mãe, ou seja, o órgão levou em conta o sofrimento da mãe de carregar uma gestação e ver seu filho morrer. Isso, segundo o professor de Direito Penal da Uerj, Jorge Luís Câmara, poderia ser usado como recurso pela família, porém, ainda assim, a legislação brasileira provavelmente seguiria a mesma linha da Irlanda.
— A mãe não é mais titular de direito. Então, neste caso, estaríamos entre o direito dos parentes e do feto, que é protegido por lei. Entre os dois, apesar do sentimento do avós, a vida do bebê teria mais peso na decisão — afirma Câmara.
Posição semelhante é argumentada pelo professor de Direito Penal da PUC-Rio, Breno Melaragno.
— Aqui não seria permitido, porque o Brasil criminaliza o aborto, com exceções de alguns casos, e este não está incluído. Mas ele está sujeito a interpretação a partir do princípio da dignidade da pessoa humana que aparece na decisão do STF — sugere o professor, ponderando que o caso não é apenas técnico e traz debates sociais e morais a reboque. — Casos polêmicos, que envolvem direitos fundamentais, acabam levantando novas discussões e com certeza podem mudar a lei.
O Globo
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