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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Grupo de centenários triplica em uma década, mas acesso a saúde ainda é restrito no Brasil

Acesso a planos de saúde variou pouco nos últimos cinco anos, segundo pesquisa; e saúde pública carece de políticas para esta faixa etária
 
Rio - Suelly Kretzmann tem mãos firmes e, com elas, pintou algumas dezenas de quadros. Parte está nas paredes de seu apartamento em Copacabana; outra foi vendida. Prefere pintar pessoas, pois “a desafiam”. Algumas delas surgiram da imaginação, como três mulheres inspiradas em Lasar Segall. Outras são reais, do tempo em que se sentava na colônia de pescadores do Posto 6 e deixava o cenário se definir. Suelly tem 100 anos e só começou a pintar depois da aposentadoria.
 
— Quando me aposentei, achei que morreria de tédio. Foi quando descobri que podia pintar — conta.
Os centenários brasileiros têm pouca expressão nas estatísticas, inclusive por conta da dificuldade de registros da época. Mas o grupo triplicou em apenas uma década e mostra que é possível ultrapassar barreiras com bem-estar. Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, eram 32.134 em 2013, contra 9.140 em 2002 — 7.325, em 1992; e 3.906, em 1982.
 
Planos de saúde estão atentos
Os que chegam melhor ao centenário, segundo pesquisadores, são os de classes mais altas, com maior acesso aos serviços de educação e saúde. Em cinco anos, o número de idosos que passaram dos 100 anos e contam com planos de saúde teve pouca variação, segundo uma pesquisa da União Nacional de Autogestão em Saúde (Unidas). Em 2013, eram 926 centenários dentro de um universo de 3,6 milhões de beneficiários. Em 2008: 982, para 3,7 milhões. O Rio tem a maior concentração: 250 indivíduos.
 
As operadoras estão atentas, já que o custo assistencial daqueles com mais de 59 anos é seis vezes maior do que os da primeira faixa etária (0 a 18 anos).
 
— Embora os idosos sejam 11,3% da população, nas operadoras já são 22,8%, taxa prevista só para 2050. Ou seja, o futuro já chegou para os planos privados — comenta Denise Eloi, presidente da Unidas.
 
Mesmo assim, Denise cobra uma mudança de visão sobre os cuidados assistenciais para eles, já que o modelo brasileiro recai sobre o atendimento emergencial, mesmo no setor privado.
 
— Se o modelo não for repensado, vamos entrar em colapso — alerta.
 
O novo modelo ao qual ela se refere já é uma discussão aprofundada em países mais desenvolvidos, como os da Europa e os Estados Unidos, onde estão mais presentes os centros de repouso com atendimento multidisciplinar, os “centros dia”(em que o idoso passa parte da jornada), unidades de cuidados paliativos etc.
 
Aqui, por enquanto, ainda são poucos os centenários que conseguem cuidados efetivos. É o grupo menos atendido por políticas públicas, diz o professor do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUC-RS, Ângelo Bós. Ele realizou uma pesquisa em que investigou dados de mortalidade de indivíduos com 95 anos ou mais entre 2000 e 2010, quando morreram 237 mil pessoas na faixa etária.
 
Deles, a maior parte faleceu “sem assistência” (14,2%) e de “sintomas e sinais anormais” (11,2%), ou seja, não identificados.
 
— São dois indicadores que mostram a dificuldade de acesso à saúde — critica.
 
Bós coordena em Porto Alegre uma unidade apenas para aqueles acima de 90 anos, que recebem atendimento nutricional, médico, fisioterápico etc.
 
— O que eles precisam é de acompanhamento de longo prazo, mas o sistema está voltado para o tratamento agudo — avalia Bós, que completa: — Precisamos mostrar que longevos podem ter qualidade de vida.
 
Quem também defende esta tese é a gerontóloga Dagmara Wozniak, há três anos no Brasil, que realizou estudos com centenários na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Numa pesquisa, entrevistou 91 pessoas com 100 anos e diz que a situação não é tão simples para eles, que acumulavam, em média, 4,3 doenças. Além disso, 51% tinham demência, índice que se compara ao de pesquisas internacionais, e apenas 9% eram totalmente independente. Por outro lado, 27% não tinham perda cognitiva, e a grande maioria era feliz.
 
— Queríamos saber quem eram esses longevos: “será que tinham mais recursos financeiros?”. Vimos que não. “Será que tiveram uma história tranquila?”. Também não, era a geração que viveu a Segunda Guerra. O que encontramos na maioria foi de ordem psicológica: otimismo, felicidade, sentido de viver — explica Dagmara.
 
Pesquisas do demógrafo James Vaupel indicam que metade das mulheres nascidas em 1970 na Alemanha chegará aos 100 anos; e metade dos homens, aos 95. Aliás, no estudo de Dagmara, 85% das centenárias eram mulheres. Quanto mais idoso, mais se alarga a diferença de expectativa de vida por gênero. E sobre os recursos financeiros, Dagmara pondera:
 
— Na Alemanha, o governo garante um nível de bem-estar aos habitantes. Se fosse num país mais pobre, poderia ter um resultado diferente. Mas a condição financeira é importante até certo ponto, depois não tem peso sobre a longevidade.
 
Economista do Ministério da Fazenda, Suelly Kretzmann hoje tem uma aposentadoria tranquila. A única reclamação é com um problema cardíaco, que ela compensa com caminhadas na praia, na companhia da cuidadora.
 
— Vivo sem pensar no dia de amanhã, tenho um pouco de pena de partir, porque a vida é boa demais — resume Suelly, lembrando-se com saudade do glamour da Confeitaria Colombo e rindo da época em que se compravam casacos de pele no Rio.
 
Aos 100 anos, Sarita Brant tem um porte elegante: arruma-se e perfuma-se para as refeições, quando às vezes toma espumante. Também vive em Copacabana com uma boa aposentadoria e sem muitos contratempos de saúde, embora há quase um ano tenha sofrido uma trombose, que lhe dificulta a locomoção.
 
Do passado, lembra-se de viagens. Numa das últimas, foi, em companhia da cuidadora Yvonette Baptista — com ela há 15 anos e hoje já completando 80 —, de barco à Argentina. Com delicadeza, Sarita puxa o crachá da repórter, lê sem óculos e pergunta a origem do sobrenome. Pergunta ainda sua idade, mas não gosta de comentar a própria.
 
— Cem anos é um desaforo! — brinca. — Meu único plano a esta altura é ter tranquilidade na família, tê-la unida.
 
Já na casa de Aurora Gonçalves — 100 anos, com plano de saúde e também de Copacabana, o bairro “mais longevo” do Brasil —, a rotina é permeada pelo samba. Carnavalesca, ela frequentou blocos há até poucos anos. Hoje, confunde-se nos fatos do passado e do presente, mas, quando o genro José Carlos de Medeiros, aposentado e músico, puxa canções de Dalva de Oliveira, Herivelto Martins ou Noel Rosa, as letras surgem na memória. Quando ele saca o violão, a feição desconfiada com as visitas se desfaz, Aurora se levanta e dança. O genro conta que foi uma guerreira e que teve uma infância difícil, mas ela garante:
 
— Não me preocupo com o que não vale a pena, deixo para lá.
 
Fórmulas da longevidade no mundo
O que mais importa para a longevidade? A genética contribui 25%. O resto provavelmente fica por conta do estilo de vida e do ambiente. Um dos principais estudos é da Sardenha, onde há 24 centenários por 100 mil habitantes (a média dos países desenvolvidos é de 19 a 20 por 100 mil), e a conclusão recai sobre a cozinha mediterrânea. Mas o Japão é o mais longevo (42,6 por cada 100 mil), onde as conclusões apontam para alimentação saudável, educação e políticas públicas.
 
Há muito ainda a desvendar sobre os centenários, e especialistas são unânimes: pesquisas brasileiras têm várias dificuldades, como a falta de dados e de financiamento. Professor da UFMG, Cássio Turra, em 2011, descobriu a mulher mais velha do mundo, com 114 anos. Por sorte, ela tinha documentos.
 
— Temos um problema sério de ausência e erros de declaração de idade para os mais velhos — afirma. — Sem dados, é muito difícil pesquisar e entender suas características.

O Globo

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