Doença, que pode chegar a 24 milhões de casos no mundo até 2035, tem dados alarmantes. Mas também pode ser prevenida e já não deve ser considerada uma sentença de morte
Aconteceu durante um exame de rotina. Ela não sabia que carcinoma — aquela palavra extravagante que aparecia no diagnóstico — tinha qualquer coisa a ver com câncer. Foi preciso o médico repetir duas, três vezes, até que Maria Isabel Teixeira, 63 anos, compreendesse que havia algo assustador em sua mamografia. “Mas o doutor foi muito atencioso, segurou na minha mão, explicou que o tumor estava no início, que talvez fosse preciso operar e que ia correr tudo bem”, contou à Radis, cinco anos, duas cirurgias, seis sessões de quimioterapia e 25 de radioterapia depois daquela tarde em maio de 2010.
Dona Maria Isabel engrossa as robustas estatísticas da doença. No Brasil, entre 1990 e 2013, o número de novos casos de câncer de mama quase triplicou: saltou de 24,9 mil para 74,6 mil, de acordo com um levantamento publicado no final de maio por um grupo de pesquisadores no periódico Journal of the American Medical Association (JAMA Oncology), tornando-se o tipo de câncer de maior ocorrência entre mulheres no país, levando à morte 16,2 mil brasileiras. O estudo — intitulado de O Fardo Global do Câncer — traz dados sobre a incidência da doença e números de óbitos em todo o mundo (ver infográfico nas páginas 18 e 19).
Segunda maior causa de morte em termos globais, atrás apenas das doenças coronarianas, o câncer matou, só em 2013, 8,2 milhões de pessoas no planeta — 213 mil delas, no Brasil. Para o professor da Escola de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Itamar Santos, que integrou o grupo de pesquisadores envolvidos na elaboração do relatório, o principal fenômeno por trás da ampliação da incidência de cânceres é o aumento da expectativa de vida e o envelhecimento populacional. “À medida que a proporção de idosos aumenta, doenças mais frequentes nessa faixa etária ganham uma importância maior”, disse, em entrevista à Radis, lembrando que, como as pessoas estão vivendo mais e as causas de óbitos por outras doenças infecciosas vêm caindo em virtude de tratamentos mais efetivos, não é surpresa que o número de casos e mortes por câncer aumente.
Por outro lado, o professor também faz questão de pontuar que os exames diagnósticos para câncer se tornaram mais sensíveis e acessíveis, o que explicaria em parte o aumento do número de casos detectados. “O câncer hoje é, em boa parte dos casos, uma doença curável e não deve ser encarada como uma sentença de morte”, sugere. Para a personagem que abre esta reportagem, foi um sobressalto, uma adversidade; nunca desespero. “Essa é uma doença ingrata, muito difícil, mas não achei que fosse morrer em nenhum momento”, diz Maria Isabel. Moradora de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, ela agora faz apenas o controle pós-tratamento, com exames a cada seis meses, no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), mesmo local onde realizou todo o tratamento. Em um dia comum, tem aulas de pintura em gesso e em tecido; noutros, faz bijuterias. Perdeu a timidez. Está prestes a realizar o seu maior sonho: “Vou conquistar a minha casa própria”, avisa aos que conversam com ela sob o pretexto da doença.
Câncer, Karkinos, caranguejo
O câncer é o nome dado a um conjunto de mais de 100 doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células que invadem os tecidos e órgãos, podendo espalhar-se para outras regiões do corpo, no que ficou conhecido como metástase. Dividindo-se rapidamente, e de maneira incontrolável, as células determinam a formação de tumores ou neoplasias malignas. À diferença destes, um tumor benigno significa simplesmente uma massa localizada de células que se multiplicam vagarosamente e se assemelham ao seu tecido original, raramente constituindo um risco à vida.
A origem da palavra vem do grego karkinos, que significa caranguejo. Consta que foi usada pela primeira vez por Hipócrates, o pai da Medicina, para descrever um tumor com vasos sanguíneos inchados à sua volta, imagem que lhe pareceu a de um caranguejo com as patas abertas. Isso explica por que o nome da doença é o mesmo do marisco que, por sua vez, também batiza o signo do zodíaco e a constelação de Câncer. Seu aparecimento como doença remonta ao ano 2600 antes de Cristo — um papiro egípcio relata a existência de 48 doenças, uma delas definida como “massas salientes no peito e que se espalham pelo peito”, o que, para Siddhartha Mukherjee, autor de “O Imperador de todos os males — uma biografia do câncer”, é a descrição do câncer de mama.
Mas, antes de tudo isso, há outras três coisas que precisam ser ditas sobre o câncer, a doença, como ensina a professora Gulnar Azevedo. Em seu gabinete, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), a pesquisadora enumera: “Em primeiro lugar, é preciso saber que muitos cânceres podem ser prevenidos, evitados. Segundo, quando detectados precocemente, outros podem ser tratados e curados. E, por último, para aqueles casos de tumores mais letais, ainda assim há muito a ser feito a fim de garantir que os pacientes tenham uma melhor qualidade de vida”.
Hoje, sabe-se que o câncer está vinculado a causas múltiplas, que vão desde a suscetibilidade genética até a condições determinadas por cultura, modos de vida e pelo ambiente. De acordo com a professora Gulnar, uma referência no assunto, o câncer vem aumentando por inúmeros motivos relacionados a fatores de risco associados à vida urbana, à industrialização, à poluição atmosférica, ao sedentarismo, ao tabagismo e à obesidade, entre outros. “Envelhecer não dá câncer. Mas à medida que as pessoas envelhecem, elas também ficam mais tempo expostas a esses fatores de risco”, diz ela. “Se a gente vivesse em condições ideais, onde tais fatores fossem controlados, provavelmente as pessoas morreriam menos de câncer”.
Estimativas
Para 2015, estima-se que ocorram no Brasil aproximadamente 576 mil casos novos de câncer. Os dados integram um levantamento realizado pelo Inca a cada dois anos. Intitulada Estimativas, a publicação atualiza e contextualiza os dados sobre a doença no Brasil e reúne informações válidas para o biênio. Este ano, o câncer de pele do tipo não melanoma será o mais incidente na população brasileira: 182 mil casos novos, seguido pelos tumores de próstata (69 mil), mama feminina (57 mil), cólon e reto (33 mil), pulmão (27 mil), estômago (20 mil) e colo do útero (15 mil).
Sem considerar os casos de câncer de pele, o relatório aponta para a incidência de 395 mil casos novos: 204 mil para o sexo masculino e 190 mil para o feminino. Em homens, os tipos mais incidentes serão os cânceres de próstata, pulmão, cólon e reto, estômago e cavidade oral; e, nas mulheres, os de mama, cólon e reto, colo do útero, pulmão e glândula tireoide. Guardadas as devidas proporções e especificidades, os dados no Brasil refletem os números mundiais. Em fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) advertiu que o mundo corre o risco de enfrentar um “maremoto” de casos de câncer nos próximos anos. Até 2035, o número de novos casos pode chegar a 24 milhões.
Apesar desse alarme, mais do que um inimigo feroz e ameaçador, o câncer deve ser visto como um problema de saúde pública a ser combatido com múltiplas ações, como preconiza o relatório do Inca, o que inclui trabalhos de educação para saúde; prevenção orientada para indivíduos e grupos; geração de opinião pública; apoio e estímulo à formulação de legislação específica para o enfrentamento de fatores de risco relacionados à doença; e fortalecimento de ações em escolas e ambientes de trabalho. Para Gulnar, o câncer é um problema de todos. “O acesso ao tratamento no Brasil está aumentando mas a conscientização em torno do assunto ainda está muito longe de acontecer”, diz. “O desafio é pensar uma rede de articulação de políticas de saúde, educação, comunicação para construir uma rede de enfrentamento do problema”.
Jogo de contrastes
Se a má notícia é que, no cenário atual, o mundo vai continuar contraindo o câncer e morrendo em decorrência da doença, como apontam as estatísticas, a boa é que muitos tipos começam a ser controlados. Segundo a OMS, cerca de metade deles pode ser prevenida. Os dados das pesquisas relativas ao câncer sofrem alterações, dependendo da região do globo e do nível de desenvolvimento de cada país. Cânceres associados à pobreza, como os de colo do útero, estômago e cavidade oral, costumam ter maior incidência em países emergentes. Enquanto em países com um melhor nível socioeconômico, observa-se um aumento na prevalência de tumores de mama, próstata e cólon/reto. Segundo o levantamento publicado no JAMA Oncology, o câncer de boca é o mais diagnosticado na Índia, por exemplo, mesmo que tenha baixa ocorrência em termos globais.
A incidência do câncer de colo uterino também é maior em países menos desenvolvidos. Em geral, ela começa a partir de 30 anos, aumentando seu risco rapidamente até atingir o pico etário entre 50 e 60 anos. De acordo com o relatório do Inca, esse câncer foi responsável pelo óbito de 265 mil mulheres em 2012, sendo que 87% desses óbitos ocorreram em países em desenvolvimento. No Brasil, o jogo de contrastes se faz evidente de uma região para outra ou ainda se forem consideradas as diferenças entre capital e municípios do interior.
Um estudo publicado em 2015 na Revista de Saúde Pública comprova essa disparidade ao analisar a evolução da mortalidade por câncer do colo uterino e de mama no país, segundo indicadores socioeconômicos e assistenciais, no período entre 1980 e 2010. No interior das regiões Norte e Nordeste e nas capitais da região Norte, as taxas de mortalidade por câncer de mama continuam em ascensão, mas caem nas demais regiões do país. Quanto ao câncer de colo do útero, a análise mostrou queda significante das taxas de mortalidade nas capitais e demais municípios das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Enquanto nas regiões Norte e Nordeste, houve queda nas capitais e aumento no interior. O maior percentual de queda foi observado nas capitais da região Nordeste.
“O risco dos cânceres associados a condições de vida ruim vem diminuindo em países com mais recursos não apenas em função do acesso a médicos e tratamentos, mas por uma melhora nas condições de vida da população”, analisa Gulnar, uma das autoras do estudo, juntamente com as pesquisadoras Vânia Girianelli e Carmen Gamarra. Ela explica ainda que o caso do câncer do colo do útero é um exemplo de câncer que pode ser evitado. “Como o rastreamento evita a lesão antes de virar tumor maligno invasivo, é possível diminuir a incidência”, diz, reforçando a importância da prevenção.
Marciene Maria da Silva tem 42 anos e três filhos. Seus dois netos nasceram depois de ela ter sido diagnosticada com câncer do colo uterino, há sete anos. No Recife, onde mora, encarou a doença como uma leoa. Quando foi detectado, o câncer já exigia uma histerectomia — cirurgia para retirada do útero. No Hospital do Câncer, fez o procedimento e todas as sessões de radioterapia. Depois de seis meses de licença pelo INSS, voltou às funções de doméstica e à vida normal. “Foi um susto enorme. Ouvir um diagnóstico como esse é terrível. Mas é preciso seguir o tratamento, manter o equilíbrio. O importante é saber que ter câncer não significa que você vai morrer”, diz, ao olhar pra trás, feliz com os resultados de seu controle semestral.
De acordo com o Inca, atividade fundamental para o controle da doença é o monitoramento continuado dos programas de prevenção e controle implementados para combater o câncer e seus fatores de risco. Esse monitoramento inclui a supervisão e a avaliação dos programas como atividades necessárias para o conhecimento do andamento e do impacto no perfil de morbimortalidade da população, assim como a manutenção de um sistema de informações de qualidade, que subsidie análises epidemiológicas como produto dos sistemas de vigilância.
“Sopa para o azar”
Em janeiro deste ano, um artigo polêmico movimentou a imprensa mundial e o mundo das pesquisas sobre o câncer. Publicado no conceituado periódico norte-americano Science por pesquisadores da John Hopkins University, o estudo afirmava que o principal fator de risco do câncer não tinha relação com fatores externos como cigarro e radiação solar, mas sim com mutações genéticas que ocorrem ao acaso. Ou seja, segundo os pesquisadores, mais do que por fatores hereditários ou ambientais, dois terços dos casos de câncer do planeta aconteciam por uma questão de azar. E, sendo assim, o foco deveria recair sobre a detecção precoce ao invés da prevenção.
O estudo provocou reações controversas e causou burburinho. É sabido que, para uma pessoa desenvolver câncer, existe sim uma fração atribuída ao acaso. Mas, para muitos pesquisadores, a busca pelas causas precisa continuar antes de tudo. O diretor da Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (Iarc/OMS), Christopher Wild, publicou artigo na revista Rede Câncer do Inca, em que defende que, se mal interpretada, esta afirmação pode resultar em consequências negativas tanto em relação à pesquisa do câncer quanto às perspectivas de saúde pública. “Concluir que o ‘azar’ é a principal causa do câncer é enganoso e pode prejudicar os esforços para identificar as causas da doença e sua efetiva prevenção”, escreveu.
Para a professora Gulnar, antes de mais nada, é preciso investir em medidas de prevenção em vez de dar “sopa para o azar”. Ela cita o exemplo do controle do tabagismo, que vem diminuindo os índices de câncer de pulmão e de outros tumores associados ao fumo desde que a legislação antitabagismo e outras medidas preventivas acabaram provocando uma redução no hábito de fumar do brasileiro. Para Itamar Santos, as políticas públicas e a mudança da relação da sociedade com o tabagismo vêm trazendo importantes avanços no combate a várias doenças, dentre elas o câncer de pulmão. “O número de casos que ainda ocorre — e o relatório O fardo global do câncer aponta 29 mil vítimas no Brasil em 2013 — só demonstra que estratégias que diminuam a prevalência de tabagismo na população devem ser reforçadas ainda mais”, conclui.
Autor: Ana Cláudia Peres
Gráfico: câncer no Brasil
Data de publicação: 01/08/2015
Autor: Felipe Plauska
Blog da Saúde