Imagem ilustrativa retirada da internet |
Claudia é parte de uma família com uma incrível história de superação. Ela é a mais velha de cinco irmãs, que nasceram e passaram a infância nas áreas pobres de Bogotá. Ficaram órfãs cedo, devido às mortes violentas do pai e da mãe. Ainda uma pré-adolescente, Claudia teve que assumir os papéis de pai e mãe.
Cedo, muito cedo, ela percebeu que a única maneira de sair da miséria era através da educação. Com mão de ferro, manteve e dirigiu sua família, com resultados impressionantes: quatro terminaram a universidade e duas, inclusive Claudia, obtiveram um doutorado. Trabalhando muito, Claudia ajudou as irmãs. Somente a menor ficou fora da sua influência, engravidando e casando cedo.
É uma linda estória, de um sucesso improvável. Contudo, não é a única característica que a diferencia da maioria das mulheres: aos cinquenta anos, com estatura normal, Claudia pesa menos de trinta quilos. É anoréxica.
Infelizmente, uma nuvem de noções erradas e romantizadas sobre os distúrbios alimentares intencionais impede que campanhas de prevenção e de sua contenção sejam bem sucedidas. Os distúrbios usualmente começam durante a adolescência ou pré-adolescência, estimulando a noção errada de que são distúrbios leves, típicos da idade, tendendo a desaparecer com a maturidade. Seriam, temporárias, chatas, mas não graves.
Nada mais errado. A anorexia tem a mais alta taxa de mortalidade das desordens psiquiátricas. Keel e associados estimaram que 17% das anoréxicas morrem em decorrência, direta ou indireta, da doença. É uma percentagem altíssima.
Em 1995, Sullivan publicou um artigo que deixou marcas profundas: analisou 42 pesquisas publicadas, através de uma técnica chamada de meta-análise, concluindo que a taxa de mortalidade (por todas as causas) das anoréxicas era muito mais alta do que a da população total e do que a das pacientes internadas por todas as demais causas psiquiátricas.
De que morrem? Em 2007, Fedorowicz et al. demonstraram que a maior parte das mortes de mulheres anoréxicas se devia ao suicídio. Embora possamos definir que uma história de anorexia seja, em muitos casos, um suicídio lento, a taxa de suicídio de anoréxicas é a mais alta de todas as doenças mentais.
O que causa isso? Uma história de abuso físico e/ou sexual na infância, alcoolismo, uso de drogas e depressão se correlacionam com a tendência ao suicídio de mulheres com desordens alimentares. Aumentam o risco, por si já elevado, causado pela própria doença.
Há outros comportamentos que fazem parte de uma síndrome: entre um quarto e metade das pessoas com desordens alimentares também se machucam ou mutilam, levantando uma bandeira vermelha. Porém, a bandeira só não basta: são necessários olhos que saibam vê-la.
Contudo, os olhos de muitos profissionais da saúde, de parentes, professores e outros que poderiam evitar esses suicídios não foram treinados, em parte devido ao conceito errado e muito difundido de que os distúrbios alimentares intencionais não são perigosos para a vida.
Há diferenças entre as desordens alimentares. Franko e Keel, após revisão da literatura, apresentaram dados que demonstram que a taxa de suicídio de anoréxicas é alta e a de bulímicas é mais baixa, mas as taxas de ideações e de tentativas são mais altas entre as bulímicas. É um fenômeno global.
Fedorowicz e outros analisaram mais de mil pacientes parisienses internadas por desordens alimentares. Confirmaram que as que sofrem de bulimia têm taxas mais altas de ideações e de tentativas suicidas e as anoréxicas de suicídio. Fennig e Hadas encontraram resultados semelhantes em Tel Aviv. Duas em três tiveram ideações suicidas e uma em quatro chegou a tentar o suicídio. A depressão também está presente: 58% das pacientes.
O abuso infantil está presente na vida de Claudia: um dos segredos familiares da sua sofrida história é o abuso de que foi vítima quando criança.
Fatores econômicos podem facilitar a passagem de ideações suicidas para o suicídio. Não determinam, mas podem facilitar. Claudia foi uma das vitimas da crise americana. A firma americana onde trabalhava faliu e parte considerável da sua poupança, em forma de ações da firma, foi perdida. Vinha perdendo peso, mas perdeu mais rapidamente a partir de então.
Há desinformação no que concerne o suicídio de anoréxicas. Pior: muitas das próprias anoréxicas são desinformadas. É mais um tipo de suicídio sobre o qual há uma pletora de informações românticas, falsas, erradas.
Claudia quis acreditar que morreria de forma indolor, gradual e pacifica. Embora sua formação acadêmica permitisse buscar a informação adequada, ela foi uma vitima fácil de sua própria doença mental. Preferiu ignorar que o corpo busca água, inclusive num estado semiconsciente, mas que, com a debilidade extrema, a capacidade de caminhar é mínima. Há quedas e mais quedas. A osteoporose significa que pequenos impactos causam fraturas.
Anne Klibanski, desde a década de 80, vem sublinhando que os ossos de adolescentes anoréxicas são semelhantes aos de mulheres muitas décadas mais velhas. Algumas perdem muita substância óssea e seus ossos podem quebrar sem queda nem exercício violento. Noventa por cento das anoréxicas sofrem de osteopenia e 40% sofrem de osteoporose.
Um fato não divulgado é que a maior parte das pessoas que são encontradas está desfigurada, com várias fraturas. Muitas entre as que são socorridas a tempo não recuperam suas capacidades. Um número substancial fica dependente para o resto da vida.
Claudia foi encontrada pela família, excepcionalmente, sem fraturas, mas com danos permanentes em vários órgãos, inclusive no cérebro. A mídia romântica não informa a população em geral dos danos estruturais no cérebro de anoréxicas.
Na Austrália, Kingston e outros demonstraram que pacientes tinham rendimento pior em atenção, habilidade visual-espacial e memória - mesmo depois de ganharem dez por cento do peso. Parte dos danos era permanente.
A ONG Anorexia Nervosa and Related Eating Disorders informa que perto de vinte por cento das pessoas com desordens alimentares sérias morrem em decorrência da doença. Apresentam a prevalência e a incidência mais altas de todas as doenças mentais. O tratamento funciona e reduz o risco de morte em mais de dez vezes, mas não é panaceia: 40% não se recuperam integralmente.
A informação que trata a anorexia como uma “chateação” típica da adolescência ignora outras sérias consequências, como as mudanças hormonais profundas, que afetam, inclusive, os hormônios reprodutivos, os relacionados com o estresse, os vinculados ao crescimento e à tireoide; a tendência aos ritmos cardíacos anormais; o desequilíbrio nos eletrólitos, os sérios problemas de fertilidade; a anemia; a perda de densidade óssea, os sérios problemas neurológicos e muito mais.
Hoje, Claudia está em um hospital. Ainda há risco de vida; se sobreviver, será dependente. Uma das terapias mais exitosas, a FBT, se baseia na família. Felizmente, a de Claudia, pela qual tanto se sacrificou, retribui o amor e a dedicação.
GLÁUCIO SOARES, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticas (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
GLÁUCIO SOARES, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticas (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Post-Scriptum de Bogotá:
O corpo de Claudia, depois de tanto tempo de abuso, não resistiu. Ela faleceu.
iG
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