Música tem sido usada como um afinado instrumento para enfrentar o estresse, amenizar dores e até doenças graves
Antes mesmo de terem sido compostos os primeiros arranjos, soarem as mais primordiais melodias ou serem construídos os instrumentos mais antigos, a música já fazia parte das civilizações. O barulho do mar e os sons da natureza sempre ecoaram e despertaram emoções. Foi só por volta de 1940, durante a II Guerra Mundial, que enxergou-se um viés terapêutico na música. Desde então, cientistas investiram em pesquisas e surgiu a denominação musicoterapia — modalidade que tem surtidos bons frutos.
Apostas são feitas em duas frentes principais: aumentar a autoestima e tratar doenças do corpo e da mente. Exemplos se acumulam pelo mundo afora. Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, há casos emocionantes, como o do coral de pacientes com câncer de laringe, que tiveram o órgão retirado. Em tese, eles não teriam voz, mas com o apoio de fonoaudiólogas foram aprendendo a emitir sons que, em coro, são de arrepiar. Em 2006 chegaram a gravar um CD.
— A voz deles é limitada em volume e modulação. Eles sabem que não virarão tenores, mas essa atividade faz bem para o espírito, melhora o sistema imunológico e a confiança, que é parte do tratamento do câncer. E o principal: aprendem a ver que não são limitados como imaginavam — conta Vera Beatriz Martins, fonoaudióloga e coordenadora do Grupo de Apoio ao Laringectomizado (Gala).
O psiquiatra da infância e da adolescência Alceu Gomes Correia Filho, especialista em Musicoterapia pelo Centro Médico de Ciências da Linguagem, em Madrid, na Espanha, explica que a canção envolve elementos que promovem uma melhor integração entre os dois hemisférios cerebrais. O esquerdo, matemático, e o direito, ligado às emoções.
— Como é universalmente prazerosa, propicia benefícios diretos e indiretos: possibilita uma melhor avaliação do tempo além de ter uma excelente evocação de memória — diz Filho.
O médico lembra da experiência que teve na Espanha, entre 1999 e 2001, quando organizou um coral de pacientes com afasia (distúrbio na percepção e expressão da linguagem), resultante de Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC) e que têm uma disfunção grave entre o pensar e verbalizar.
— Observamos que, quando eram orientados a entoar canções conhecidas desde a infância, restauravam em parte uma habilidade perdida com o AVC. Mesmo não pronunciando as palavras inteiras, cantavam melhor do que falavam. Estar em grupo também desempenhava um papel motivador até para os tratamentos complementares — relatou Filho.
Maria Lúcia Andreoli de Moraes, professora de psicologia social e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), acredita que a música é uma linguagem universal, anterior até mesmo à linguagem verbal e pode interferir no comportamento e no sentimento de uma forma muito profunda:
— Mesmo no ventre, a criança já tem contato com os primeiros ritmos da mãe: cardíaco, circulatório e intestinal. Na medida em que o adulto pode recuperar a relação entre os ritmos produz calma, reflexão e auto-observação.
Mas não basta escolher qualquer música: é aí que entra o preparo e a sensibilidade do profissional que vai trabalhar com o tema.
— Um rock pauleira não é o mais indicado para alguém muito agitado, assim como não adianta trabalhar com as dificuldades e sim com as habilidades do paciente. Pode ser que nunca consiga ler, mas seja um bom pianista — pondera a coordenadora do curso de musicoterapia das Faculdades EST, de São Leopoldo, Sofia Cristina Dreher.
Caso de Herbert é referência
Após mais de 10 anos do acidente de ultraleve que deixou o cantor Herbert Vianna paraplégico, o músico segue militando em prol da musicoterapia. À imprensa carioca, o colega de Paralamas João Barone contou que ainda quando o amigo estava na UTI, levava um walkman e CDS para que ele pudesse ouvir. Quando foi para o quarto, já dedilhava o violão.
— A música e os Paralamas foram fundamentais para que eu pudesse me reconectar com a vida. A ciência deveria estudar mais o benefícios que a música traz na recuperação das pessoas — disse Herbert, via e-mail, por meio da sua assessora de imprensa.
Essa reunião com a vida se multiplica em centros de recuperação e estudos mundo afora. Um deles é o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas do Grupo Hospitalar Conceição. Todas as terças-feiras, jovens e adultos que estão em processo de abandono de drogas se unem para fazer barulho no grupo batizado de Tocante.
De acordo com o enfermeiro André Furquim, responsável pela equipe musical, temas de interesses dos integrantes são levados para virarem notas musicais em instrumentos de corda e percussão.
Apesar do clima envolvente, nem todos aderem ao grupo de início. Com um homem de 33 anos que não quis se identificar, mais de três encontros se passaram até que enxergasse a importância da música na sua recuperação.
— A música deixa o ambiente bom, amolece os corações e a gente fica mais sensível. Vir para o Tocante me deixou mais receptivo para muitas coisas, inclusive, para seguir com o tratamento — explicou o homem que está "limpo" há 10 meses e que voltou a estudar em meados de agosto.
Entenda a musicoterapia
O que é?
É uma atividade que envolve um campo de trabalho que vai muito além da simples terapia que utiliza a música como instrumento. Ela apresenta uma série de ferramentas associadas à prevenção e uma abordagem complementar a diversos tratamentos na área da saúde mental, fisioterapia e terapia ocupacional. Já está no código brasileiro de ocupações, mas ainda não foi habilitada.
Como é a consulta?
É parecida com a terapia tradicional, incluindo a entrevista e a avaliação diagnóstica. A partir dos dados colhidos nas conversas, traça-se o objetivo do tratamento, que pode ser cantar ou tocar algum instrumento. Procura-se trabalhar as habilidades em vez das dificuldades. O objetivo final não é estético, e sim terapêutico. Quem realiza a consulta é o musicoterapeuta, profissional qualificado que tem, além de noções de canto e teoria musical, conhecimentos sobre psicologia, neurologia, psiquiatria e gerontologia, entre outras áreas científicas.
Alívio para o corpo e a alma
A música pode ser complementar em diversos distúrbios. Confira para quais problemas ela tem sido utilizada.
:: Autismo: estes pacientes são fascinados pela música e têm dificuldade em falar em primeira pessoa. Em geral, eles não conseguem expressar os sentimentos, porque não possuem o intelecto preservado. A música pode ajudá-lo a dizer coisas que precisa, mas não consegue. Ao viverem em um mundo limitado, os autistas ficam muito concentrados ao ouvir músicas, pois não requer deles atividade paralela.
:: Timidez: na área da socialização, crianças com quadros fóbicos de timidez podem ser beneficiadas, pois a música funciona como ferramenta de desinibição pelo prazer. Os benefícios à autoestima são os mais observados, uma vez que o indivíduo passa a ser sujeito ativo na área expressiva.
:: Doenças demenciais: ferramenta que transcende a simples terapia, ela permite reviver situações do passado ligadas às emoções e ao afeto.
:: Transtorno de déficit de atenção: pode ser um método complementar ao tratamento. A música age controlando melhor a ideia de tempo, preenchendo a necessidade de bem-estar imediato dos pacientes. Transformar fórmulas e regras escolares em músicas pode ser um bom método de fixação do conteúdo, por exemplo.
:: Danos cerebrais: quando uma área é afetada no cérebro, outra começa a ser usada na tentativa de compensar as sequelas. A música serve como um estimulante para ampliar a capacidade do órgão.
:: Dor: as melodias ajudam a desviar o foco do paciente, trazendo alívio.
:: Coma: o musicoterapeuta André Brandalise estuda a aplicação de sons no coma em sua tese de doutorado na Filadélfia e diz que encontrou oito trabalhos científicos sobre o tema. Notou que pessoas em coma respondem através de sinais vitais (batimento cardíaco, pulsação) aos estímulos musicais. Qualquer som familiar, como o timbre da voz de um ente querido, o canto do pássaro ou o latido de cachorro se transformam em melodia para quem está em coma. A intervenção terapêutica, segundo ele, torna o coma menos solitário.
:: Câncer: direciona a motivação e potencial para o lado criativo e não para a patologia. Começa a motivação por estar vivo e a crença em si para lutar contra a doença. Serve como estímulo para deixar o corpo mais forte.
:: Autoestima na terceira idade: os idosos possuem imenso repertório de vivências. A terapia com música estimula que eles relembrem e façam uma síntese da vida através de criações. Além disso, há um foco orgânico. A música incentiva que o idoso levante se estiver acamado, por exemplo, para cantar melhor de pé.
Fonte Zero Hora
Nenhum comentário:
Postar um comentário