As empresas de tabaco estão resistindo à ascensão mundial das leis contra o fumo, usando uma estratégia legal pouco notada para adiar ou bloquear a regulamentação. O setor está avisando a esses países que suas leis sobre o tabaco violam uma rede crescente de tratados comerciais e de investimentos, levantando a perspectiva de batalhas legais prolongadas e caras. A informação é de autoridades e ativistas da saúde.
A estratégia vem ganhando força nos últimos anos, à medida que o tabagismo diminui nos países ricos e as empresas de tabaco procuram conservar seu acesso aos mercados rapidamente crescentes dos países em desenvolvimento. Representantes da indústria do cigarro dizem que há apenas alguns poucos casos de litígio ativo e que dar um parecer legal a governos é algo de rotina no caso de grandes atores cujos interesses serão afetados.
Mas, para os adversários do setor do tabaco, a estratégia intimida países de baixa e média renda, desencorajando-os de combater uma de suas maiores ameaças à saúde: o fumo. Eles dizem que a tática legal está enfraquecendo o maior tratado global de saúde pública, a Convenção da OMS para o Controle do Tabaco, que visa reduzir o tabagismo, incentivando as restrições à publicidade, embalagens e vendas de produtos de tabaco. Desde que a convenção entrou em vigor, em 2005, já foi firmada por mais de 170 países.
Mais de 5 milhões de pessoas morrem anualmente de causas relacionadas ao tabagismo, um número maior que as vítimas da Aids, malária e tuberculose juntas, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Alarmada com o aumento do tabagismo entre mulheres jovens, em 2010 a Namíbia, no sul da África, aprovou uma lei de controle do cigarro, mas em pouco tempo se viu bombardeada de avisos da indústria do tabaco de que o novo estatuto viola as obrigações do país no quadro dos tratados comerciais.
"Temos inúmeras cartas recebidas dela [a indústria do tabaco]", disse o ministro da Saúde do país, Richard Kamwi.
Três anos depois o governo, com receio de encarar uma batalha legal de custo alto, ainda não implementou nenhuma medida da lei, como a limitação dos anúncios ou a inclusão de avisos grandes de saúde nas embalagens de cigarros.
A questão ganha urgência especial agora, no momento em que os Estados Unidos concluem negociações com 11 países do Pacífico sobre um novo e importante tratado comercial que se pretende que seja um modelo para as regras do comércio internacional. Funcionários do governo americano dizem que a ideia é que o novo tratado eleve os padrões de saúde pública. Eles apontam para o tabaco como ameaça à saúde. A linguagem usada desagradou à Câmara de Comércio dos EUA, para a qual a inclusão do tabaco deixará aberta a porta para que outros produtos, como refrigerantes ou açúcar, sejam fortemente regulamentados em outros países.
"Nossa meta com este pacto é proteger as normas legítimas de saúde que os países signatários do pacto desejam --protegê-las contra os esforços das empresas de cigarros para enfraquecê-las", disse o representante comercial dos EUA, Michael Froman, em entrevista telefônica. Segundo ele, o texto do acordo ainda não foi finalizado.
Mas defensores da saúde pública dizem que o texto atual não impede países de serem processados quando adotam medidas fortes de controle do tabaco. Para alguns especialistas comerciais, contudo, o pacto pode reduzir as chances das empresas de tabaco vencerem as ações judiciais. No outono [do hemisfério norte] deste ano, mais de 50 deputados e 12 senadores mandaram cartas à administração americana expressando preocupação.
O consumo de tabaco mais que dobrou no mundo em desenvolvimento entre 1970 e 2000, segundo as Nações Unidas. Boa parte do aumento se deu na China, mas o consumo vem crescendo substancialmente na África, onde o índice de tabagismo era tradicionalmente baixo. Hoje mais de três quartos dos fumantes do mundo vivem no mundo em desenvolvimento.
A diretora geral da OMS, Margaret Chan, disse em discurso no ano passado que as ações legais movidas contra o Uruguai, Noruega e Austrália "tiveram o objetivo proposital de meter medo" nos países que tentam reduzir o tabagismo.
"O lobo não está mais disfarçado em pele de cordeiro, e está arreganhando os dentes", ela afirmou.
As empresas de tabaco estão fazendo objeção às leis vigentes em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Elas dizem que respeitam os esforços dos países para proteger a saúde pública, mas enfrentam dificuldades para promover suas marcas, à medida que mais países proíbem os comerciais de cigarros. Com frequência o único espaço que resta é a própria embalagem dos cigarros, e mesmo esse espaço está encolhendo, na medida em que alguns países exigem que as embalagens sejam cobertas de imagens chocantes de pessoas com câncer. Na Austrália, os nomes de marca dos cigarros foram reduzidos a letras uniformes sobre um fundo verde-oliva simples.
"A remoção de nossas marcas registradas remove nossas garantias ao consumidor quanto à origem e qualidade de nossos produtos legalmente disponíveis, tornando impossível distinguir nossos produtos daqueles de nossos concorrentes", queixou-se Gareth Cooper, diretor de regulamentação da British American Tobacco.
No início dos anos 1990, o governo americano pressionava países a abrir seus mercados às empresas de tabaco americanas. Enquanto subiam os índices de tabagismo em alguns desses países, crescia o ultraje. Em 2001 o presidente Bill Clinton emitiu uma ordem executiva proibindo o governo americano de fazer lobby em prol da indústria de tabaco.
Mas surgiram outros tipos de acordos comerciais que dão direitos às empresas.
O objetivo desses tratados é promover a prosperidade, ao reduzir as barreiras comerciais e proteger investidores contra desapropriações por governos estrangeiros. Os tratados permitem que empresas movam ações judiciais diretamente, em vez de terem que persuadir um governo a engajar-se com sua causa. Desde a década de 1990 eles proliferaram e hoje chegam a cerca de 3.000, contra algumas centenas no final da década de 1980, segundo o professor de direito Robert Stumberg, do Instituto Harrison de Direito Público, da Universidade Georgetown. Entre seus clientes estão grupos de combate ao tabagismo.
Patricia Lambert, diretora do consórcio legal internacional da Campanha por Crianças Livres de Tabaco, disse que pelo menos quatro países africanos --Namíbia, Gabão, Togo e Uganda-- já receberam avisos da indústria do tabaco de que suas leis violam os tratados internacionais.
"Estão tentando intimidar todo o mundo", disse Jonathan Liberman, diretor do Centro McCabe de Direito e Câncer, na Austrália, que dá apoio jurídico a países processados por empresas de tabaco. Na Namíbia, o setor do tabaco diz que a exigência de inclusão de grandes avisos sobre as embalagens de cigarros viola seus direitos de propriedade intelectual e pode alimentar a produção falsificada.
Gareth Cooper, da British American Tobacco, cuja afiliada local enviou um parecer legal ao governo, disse em e-mail que os países deveriam "considerar o contexto mais amplo da implementação de normas que possam impactar o comércio".
O advogado comercial Thomas Bollyky, membro do Conselho de Relações Exteriores, disse que muitos países em desenvolvimento estão em desvantagem em casos de investimento, por não possuírem a perícia legal especializada ou os recursos necessários para se defender.
O Uruguai já admitiu que, se o prefeito em final de mandato de Nova York, Michael R. Bloomberg, não tivesse pago pela defesa da lei, o país teria sido obrigado a desistir de sua lei de controle do tabaco e fechar um acordo com a Philip Morris International. (A receita bruta da Philip Morris no ano passado foi de US$77 bilhões, valor que supera consideravelmente o produto interno bruto do Uruguai.) Mesmo países desenvolvidos como Canadá e Nova Zelândia recuaram das leis antitabagismo que previam implementar, disse Bollyky, diante das alegações sobre o tratado de investimentos.
A batalha legal que está sendo observada com mais atenção está sendo travada na Austrália, onde o setor do tabaco perdeu uma ação nos tribunais domésticos no ano passado. A Philip Morris International moveu uma ação invocando um tratado de investimento entre a Austrália e Hong Kong, onde a firma tem uma filial. O julgamento, que não será aberto ao público, terá lugar em Cingapura e será decidido não por juízes, mas por árbitros externos.
A Philip Morris International possui dezenas de subsidiárias, disse Stumberg, fato que lhe permite "jogar o jogo do tratado com muito mais destreza".
As empresas estão até pagando a países para que apresentem seus argumentos contra outros países na OMC. A Ucrânia registrou uma queixa junto à OMC contra a lei de embalagem de cigarros da Austrália, apesar de os dois países praticamente não terem laços comerciais. Cooper admitiu que sua empresa está ajudando a Ucrânia a pagar a conta legal, mas disse que essa é uma prática padrão em disputas levadas à OMC.
Bashupi Maloboka, um funcionário do Ministério da Saúde que conduziu a lei de controle de tabaco até ser aprovada na Namíbia, disse que a tática usada pelo setor dos cigarros tornou mais lento um processo que já era extremamente vagaroso.
"O receio é que eles [os fabricantes de cigarros] têm dinheiro e recursos. Podem pagar por qualquer coisa", disse Maloboka, que se aposentou no ano passado.
Mas Richard Kamwi, o ministro da Saúde, espera que as normas para a implementação da lei de 2010 sejam concluídas em 2014. "Decidimos dar um basta", ele disse. "Se quiserem nos processar, os veremos no tribunal."
Folhaonline
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