Pesquisas, no entanto, ainda não conseguem tratar o vírus, que sobrevive em reservatórios do organismo
Foto: REUTERS - Ativista participa de homenagem aos especialistas mortos em um voo da Malaysia Airlines, que voavam para participar da Conferência sobre a Aids |
Rio - Um passo para frente, um para trás. O combate ao HIV foi tema
ontem de boas e más notícias. O número de infecções diminuiu, mas uma
linha de tratamento considerada promissora pela comunidade científica
naufragou.
Os aplausos vieram de um censo inédito, conduzido em
188 países pela Universidade de Washington (EUA). Entre 1997 e 2013, o
número de novas infecções por HIV registrado a cada ano diminuiu em
cerca de 33%. Hoje, ao redor de 30 milhões de pessoas estão contaminadas
no planeta. Programas que fornecem terapia antirretroviral e a
prevenção da transmissão de mãe para filho são descritos como os grandes
responsáveis por aumentar a vida dos portadores do vírus. E o
investimento para isso é modesto. Em 2011, foram US$ 7,7 bilhões para
prevenir e tratar.
— É impressionante, porque este é um custo
relativamente baixo em comparação ao dedicado a terapias contra outras
doenças — destaca Bernardo Hernández Prado, professor do Instituto de
Métrica e Avaliação para a Saúde da Universidade de Washington.
O
número de mortes entre os contaminados caiu aceleradamente a partir de
2000, quando foram estabelecidos os Objetivos do Milênio da ONU. Entre
eles está acabar com a disseminação da infecção pelo vírus até 2015.
— O HIV é, cada vez mais, uma condição com que a pessoa vive, e não a causa da morte — acrescenta Prado.
O
vírus, no entanto, ainda encontra terra fértil em algumas regiões,
principalmente a África Subsaariana. Em Botswana e Lesoto, o índice de
contaminação é de abismantes 12% da população. No Sudeste Asiático, as
maiores taxas estão na Tailândia e em Papua Nova Guiné.
A
incidência do HIV também é relativamente alta em alguns países europeus,
como Portugal, Espanha e Ucrânia, além de parte da América Latina.
Panamá, Honduras e Suriname estão entre as nações que levaram a
comunidade científica a acender o sinal vermelho.
O Brasil
continua a ser considerado exemplar no combate ao HIV. O número de
mortes pelo vírus caiu de 17 mil, em 1996, para 10 mil no ano passado.
Entre 2000 e 2013, o índice de óbitos caiu 2,3%, mais do que a média
global, de 1,5%.
Coautor do relatório e professor do Instituto de
Medicina da USP, Paulo Lotufo acredita que um dos maiores triunfos do
país foi o pioneirismo na distribuição de coquetéis antirretrovirais. O
pesquisador, no entanto, defende mais atenção ao estudo da doença.
—
É um trabalho cotidiano e detalhista que, se não for tomado, pode tirar
o Brasil da condição de modelo internacional — alerta.
— Devemos evitar
o fenômeno da acomodação. Quando existe um remédio, a população
acredita que a situação está sob controle e não se protege contra uma
contaminação.
A preocupação de Lotufo é reflexo de um relatório
divulgado na semana passada pelo Programa Conjunto das Nações Unidas
HIV/Aids (Unaids) que indicou um aumento de 11% na quantidade de novas
infecções entre 2005 e 2013. No mesmo período, o número de casos
diminuiu 28% em todo o planeta.
O levantamento global foi
anunciado durante a Conferência Internacional sobre a Aids, na
Austrália. O evento começou com uma homenagem a seis especialistas que
morreram no voo MH17, da Malaysia Airlines.
A volta do vírus na criança curada
A
decepção da semana veio na revista “Nature”. Segundo um estudo
publicado por pesquisadores da Universidade de Harvard, nos EUA, o
tratamento contra o vírus HIV desde os primeiros dias de vida pode não
curar o paciente da doença, como sustentavam muitos cientistas.
De
acordo com a pesquisa, mesmo que antirretrovirais sejam aplicados em
bebês durante os anos iniciais da vida, o vírus pode ser detectado
depois, quando a medicação é interrompida. Especialistas descreveram o
resultado como “preocupante”.
Isso aconteceria por causa dos
reservatórios do HIV no intestino e em tecidos do cérebro, que
demonstraram uma capacidade precoce de formação e ficam intactos.
Acreditava-se que os remédios poderiam impedir a formação desses
reservatórios.
— Os coquetéis já existentes são cada vez mais
eficientes contra a replicação do vírus. O grande problema é se livrar
das “sementes” que o vírus deixa quando se instala no sistema
fisiológico, onde ele fica em estado latente — alerta Amilcar Tanuri,
chefe do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ, que não participa
do estudo. — O HIV consegue se esconder em tecidos aonde a medicina
ainda não tem acesso.
Para chegar ao estudo de latência, o vírus
precisa de um certo tempo, ainda não conhecido. Por isso, o desafio dos
cientistas é atacá-lo antes que ele consiga se acomodar.
Nos EUA,
um bebê contaminado começou a receber medicamentos antirretrovirais
apenas 30 horas depois de nascer. A criança foi tratada durante os
primeiros 18 dias de vida. Em seguida, o coquetel foi retirado.
Chegou-se à conclusão de que a menina estava “funcionalmente curada”. Na
semana passada, no entanto, foi anunciado que ela, agora com 4 anos de
idade, apresentou novamente a doença.
— Esta notícia infeliz da
recuperação do vírus enfatiza a necessidade de compreendermos os
reservatórios virais precoces, que se estabelecem muito rapidamente após
a infecção — ressalta Dan Barouch, professor da Escola de Medicina de
Harvard.
Uma outra frente de combate ao HIV, proposta esta semana
pela Universidade Temple (EUA), é a criação em laboratório de células
resistentes. Ao ser injetadas no organismo, elas teriam maior capacidade
de sobrevivência do que as infectadas. O estudo, publicado na revista
“Proceedings of the National Academy of Sciences”, descreve uma operação
realizada em laboratório. Uma enzima codificada pelo DNA é levada ao
núcleo da célula contaminada. Desta forma, o gene que produz o receptor
do HIV — a sua “porta de entrada” — é destruído. A partir daí, a célula
se torna resistente ao vírus. A cultura celular, então, pode ser levada
ao organismo.
Mutações continuam a desafiar cientistas
A
técnica, no entanto, ainda esbarra em desafios significativos. Os
cientistas precisam elaborar um método para administrar o agente
terapêutico para cada célula infectada. Além disso, o HIV pode fazer
mutações. Com isso, o tratamento deve ser individualizado, já que cada
pessoa tem suas sequências virais.
— Não é um tratamento de larga
escala — analisa Tanuri. — E o paciente também teria que passar por
alguns procedimentos, como uma quimioterapia.
O uso prolongado de
medicamentos antirretrovirais pode provocar fortes efeitos colaterais
como osteoropose, doenças renais e maior propensão a doenças cardíacas.
No entanto, os especialistas são otimistas. Tanuri acredita que as
intervenções nos reservatórios do HIV podem levar à sua eliminação em
até dez anos. E Lotufo, que se formou em Medicina em 1980, um ano antes
da descoberta do HIV, lembra alguns dos pontos principais no combate ao
vírus.
— Avançamos muito na identificação do agente, nas análises
do tratamento e na prevenção — conta. — A qualidade de vida melhorou
bastante.
O Globo
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