Mercado abre diálogo sobre os velhos problemas do setor de saúde, mas enquanto a aplicação das medidas não é posta em prática, a cadeia perde oportunidade de enxergar novos nichos e trazer rentabilidade, patinando em antigos problemas
Uma das profissões mais antigas do mundo, a do médico, é parte fundamental de uma discussão que coloca em jogo a sustentabilidade do setor de saúde. Mas esse é apenas um elemento de uma teia composta por argumentos contraditórios.
Tal rede é permeada pelos não tão antigos, mas nem por isso menos importantes, planos e seguros de saúde; hospitais- que ora são vistos como mercado, ora como instituições ainda ligadas à caridade; saúde como política pública garantida para todos por lei; e um setor recente sob o ponto de vista de regulamentação, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foram cridas há pouco mais de dez anos.
Hoje, esses agentes são dependentes, mas nem por isso significa que essa convivência é harmônica. Pelo contrário, essa obrigatoriedade da relação entre os agentes do setor, está cada vez mais ligada ao confronto em embates judiciais, onde todos são prejudicados, inclusive o paciente, que não tem voz ativa e é passível de decisões que o afetam diretamente. Apesar de discussões contínuas, os acordos não são praticados, enfrentam resistência em um setor que não se entende, defende interesses próprios e onde há um relacionamento marcado pela falta de confiança entre os pares.
Junte ao relacionamento desgastado ou a falta de relacionamento: discussões políticas, baixa remuneração médica, a briga da remuneração entre operadora e hospital, aspirações por remuneração por desempenho, o custo alto da tecnologia empregada nos hospitais, as indústrias como parte responsável por essa oferta, médicos autônomos que prestam serviço em várias entidades e um paciente insatisfeito, além de outros fatores, se tem a receita perfeita para anos de discussão e nenhuma inovação.
Enquanto nada se resolve e todos olham para os mesmos problemas e nichos de mercado específicos, se perdem oportunidades de crescimento e de melhoria no setor.
Entraves do avanço
No Brasil, as primeiras organizações de médicos para atender pacientes mediante a pagamentos fixos surgiram na década de 60. E é o médico, a figura central dessa cadeia. Hoje, ele está presente na direção tanto de hospitais, como associações de classe, operadoras, lideranças no governo e na presidência das autarquias reguladoras.
Não é novidade o relacionamento marcado por confrontos e embates judiciais, mas as conversas entre os membros de operadoras e hospitais já foram organizadas anteriormente. É o que lembra o presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), Arlindo de Almeida. “Foram formados encontros realizados na Abramge, eram 10 ou 12 operadoras e os principais hospitais de São Paulo. Logo no início, a gente notava que havia um conflito muito grande, era uma briga, isso durou mais ou menos dois anos e, no fim, as pessoas se tratavam bem”.
Presente nas discussões deste grupo estava o superintendente de operaçoes do Hospital Samaritano de São Paulo, Sérgio Lopez Bento. Segundo ele, as primeiras reuniões eram marcadas por um ranço antigo, mas com o tempo o relacionamento melhorava e chegavam a consensos. O problema é partir para a prática das ideias decididas em comum acordo, elas são discutidas e acertadas, mas o entrave está na aplicação.
“Esse é um aspecto importante: a dificuldade de implementação dos temas que foram acordados em debates. Essa é uma preocupação também partindo do grupo da ANS, que discute novos modelos de remuneração. Como implementar o que foi “consensado” é uma grande preocupação a ser discutida. Como fazer chegar na ponta e todos respeitem aquilo que foi acordados. Entre operadoras e hospitais, os contratos não são respeitados”, questiona Bento.
Essa implantação de acordos não evolui para a prática, por conta da própria relação entre operadoras e prestadores. Falta confiança nessa convivência. “A dificuldade de implementação é muito grande por vários motivos, o principal deles é, talvez, a desconfiança que existe entre operadoras e prestadoras”, pontua o presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e diretor do Hospital Matter Dei, Henrique Salvador.
Custo da desconfiança
Além dos consensos estão os acordos legais, contratos que não são cumpridos cotidianamente, que colocam o hospital e operadora em confronto, engordam o judiciário e prejudicam a gestão do hospital por conta dos valores e prazos envolvidos.
Em uma rede conectada e dependente de si para a sobrevivência, cada agente defende um ponto de vista que lhe é apropriado, não há entendimento do parceiro e as consequências são prejudiciais, inclusive financeiramente. O custo da desconfiança entre hospitais e operadoras é mensurável em ambos os lados. É o que aponta Bento, no Samaritano, o custo da desconfiança na relação entre prestadores e operadoras é nítido nos valores gastos com profissionais responsáveis por pré-análise e pós-análise das auditorias, autorizações e faturamento. “É um contingente de pessoas que representa 6% do custo de pessoal e não agrega valor para o paciente final “, explica.
Do lado das operadoras, o custo da desconfiança também é visível. Bento cita dados da ANS, onde 15% do custo das operadoras representam gastos administrativos, no qual tem uma parte de despesa comercial, mas também há custos pesados com “overhead”. “Se a gente tivesse um nível de confiança maior, parte desse custo poderia ser aplicada com aquilo que interessa que é o tratamento do paciente. A desconfiança é um custo que não agrega valor e dá overhead para ambos”, pontua.
De acordo com Paulo Marcos de Souza, diretor da Amil, esse prejuízo ocorre devido ao sistema em que operadoras e prestadores estão inseridos. “O custo da desconfiança está no modelo restabelecido, onde, para um ganhar, o outro tem que perder”. Ele ainda acrescenta que duas coisas devem ser levadas em consideração ao tratar desse sistema: o modelo de relacionamento, a outra é a herança de um setor recente, com menos de 40 anos.
E esse “não-relacionamento” contribui para entraves no setor e, segundo Bento, leva o mercado para a miopia. “São 75% dos beneficiários em planos coletivos, a fonte pagadora não é mais uma operadora é uma entidade patrocinadora”, analisa. Um modelo insustentável também para essas empresas que custeiam o plano para o funcionário, mas não estão na mira de grandes mudanças por parte do setor.
Se há grandes gastos com a falta de confiança, grandes negócios deixam de ser feito pela insistência nos mesmos modelos e nichos, por um consenso que só leva à competição. O diretor do Hospital M´Boi Mirim, localizado na zona sul de São Paulo, Silvio Possa, observa que somando o bairro do hospital e um vizinho são 1,3 milhão pessoas, onde 35% possuem convênio médico, mas na região só existem dois hospitais, ambos públicos, para atender o contingente.
Para o superintende do Hospital Nove de Julho, Luiz de Luca, isso é uma miopia de mercado. Enquanto faltam hospitais e tratamentos em bairros afastados na capital paulista, os hospitais competem entre si na região da Paulista. “Todo mundo fica sempre deslumbrado com a atratividade de maiores ganhos, rentabilidade e da tal alta complexidade, voltamos de novo para mesmice do mercado. O “fashion healthcare”. Hoje, por exemplo, todos os hospitais investem em oncologia, todos buscando o mesmo mercado ao mesmo tempo”, provoca. Segundo o executivo é uma questão de enxergar o nicho. “É arregaçar a manga, montar competência e ir para cima. Isso é uma baita de uma miopia”, completa.
Para o executivo, o foco em competências e habilidades específicas é que trará mais competitividade para o mercado de saúde. Ir para o “fashion healthcare”, apenas querendo agregar tecnologia, inovação e modernização de espaços sem ter um foco específico contribui para a ineficiência do setor.
Relacionamento em foco
Mas antes de existir um custo de desconfiança, há um relacionamento não harmônico, um não relacionamento entre os agentes que resulta em altos gastos para todos e impede a evolução do setor rumo ao entendimento. Tal relação foi formada ao longo do tempo de um mercado recente, que não conseguiu proseguir sem confrontos. “O modelo foi construído em cima de paradigmas que não foram questionados”, explica o professor e gerente de projetos da Fundação Dom Cabral, Osvino Filho.
Salvador, da Anahp, lembra que a relação nem sempre é nefasta. Muitas vezes, são nutridas por comportamentos que são exceção, não regra. Não é todo prestador que turbina conta nem todo prestador desperdiça. Não é toda operadora que glosa indiscriminadamente e que dificulta o acesso ao tratamento médico e tecnologia”.
Se os prestadores de serviço e as operadoras estão destinados a conviver dentro do sistema de saúde, onde o segmento suplementar coexiste com o público, devido às próprias deficiências do serviço oferecido pelo governo e pela complementação mútua, o modelo de relacionamento entre os pares deve mudar. E para isso a saída é o diálogo. “Temos que estar unidos nessa condenação, em um colóquio permanente e nesse entendimento, nem todas as operadoras são ruins”, diz Souza.
Dentro desse contexto, frequentemente, o modelo de fee for service é apontado como o grande culpado. Para substituí-lo, o pagamento por desempenho seria o grande salvador do sistema, mas como migrar de sistemas com um relacionamento mal resolvido? Quanto a isso há um consenso de que antes de um novo modelo de remuneração deve se pensar no modelo de relacionamento e de convivência harmônica.
“Nós, prestadores, somos custos para as operadoras e a operadora é receita para o prestadores. Tudo que se discute hoje inclusive na ANS diz respeito ao novo modelo de remuneração que pretende não desequilibrar o setor. A grande questão é esse movimento de pêndulo que ocorre de vez em quando. Precisamos ter muito cuidado para não provocar uma desestruturação neste setor, que tem tudo para crescer pela frente”, pondera Salvador.
Para melhorar essa relação, uma das linhas apontadas por Souza da Amil, é a transparência, onde os todos os hospitais tornariam público seus balanços. “O importante é o diálogo que precisa ser aprofundado e caminhar. A acreditação foi um passo muito importante para os hospitais, segurança do paciente e do médico, o passo seguinte é a transparência: os hospitais precisam publicar os resultados, porque é barato ou caro e comparar os resultados com os vizinhos”.
A Amil, controladora de 34 hospitais, tem os mais diversos pacotes de procedimentos. Souza exemplifica que em um dos hospitais começou a medir o desempenhos de cada médico, só um tipo de patologia em um mesmo hospital com equipes diferentes, um procedimento cirúrgico, por exemplo, pode custar de R$ 10 mil a R$ 18 mil reais, e se o preço fechado for o menor e o paciente for atendimento para a equipe de custo alto, isso pode trazer grande prejuízo para o hospital.
“É tão subjetivo e tão complexo tudo isso, que para você firmar pacote e pagar por pacote, todo mundo tem que estar muito bem alinhado. É importante ter uma gestão muito firme dos hospitais, pacote é uma negociação muito dura e de ambas as partes”, explica.
Integrante de um grupo de trabalho que discute modelos de remuneração, Sérgio Bento, do Samaritano, disse que os debates têm avançado rumo ao direcionamento dos modelos de pacotes para os procedimentos que têm baixa variabilidade, do ponto de vista do desfecho clínico dos insumos, encaminhando os procedimentos cirúrgicos para pacote e os procedimentos clínicos para a diária global. “ A mudança do modelo vai nesse sentido, o que gera um aumento de risco para o hospital e obriga a ter gestão de corpo clinico para ter gestão de recursos e ficar dentro preço”.
Além dos custos da relação entre os pares é preciso entender o que é performance, esse é o alerta de Filho, da FDC. “Entender o que é performance, sendo ela um moldador de comportamentos do setor é preciso cuidado com a introdução desse pagamento por performance, se pagar a performance errada, você vai moldar o setor de uma forma errada também.
Mônica Castro, superintendente de provimento a saúde da Unimed BH, que já utiliza um modelo de incentivo aos hospitais credenciados na cooperativa, com pagamentos diferenciados às entidades que investem em qualificação e acreditação, pondera que as decisões sobre um futuro modelo deve considerar indicadores que façam sentido para o corpo clínico, como o gerenciamento de crônicos. “A performance é sempre positiva, não é punitiva, é sempre um incentivo para mais e não para menos, tem que ser considerada a dimensão do conceito do cliente, tem que fazer sentido clínico, a gente não trabalha com conceito”.
Médicos no centro
Na teia de relações estão os médicos, ponto fundamental entre os agentes do setor. O questionamento atual é o tratamento que deve ser dado a esse profissional que está no cerne do conflito rodeado pelos problemas entre operadoras e hospitais, como elo principal com o paciente e como prestador de serviços. Tal tratamento passa novamente pelo modelo de remuneração, cujo direcionamento passa obrigatoriamente pela mensuração do trabalho exercido pelo corpo clínico.
Mas não é só. Um terceiro player, que permeia a cadeia e tem papel fundamental no desenvolvimento no setor, a indústria está envolvida no cotidiano dos médicos. Surge, então, a grande discussão a respeito do relacionamento do profissional com a indústria, e se ele deve ser visto como cliente ou como parceiro.
“Eu acredito que o médico ainda é um parceiro muito próximo do hospital, essa é praticamente a casa do médico. Os hospitais querem os médicos estejam lá, assim como querem que o paciente esteja lá. Pode ser usado, mas eu não acho que cliente é o termo mais adequado”, afirma o presidente da Associação Paulista de Medicina, Jorge Cury.
De acordo com o diretor médico do Hospital Albert Einstein, Miguel Cendoroglo Neto, os médicos devem ser tratados como lideranças. “Em alguns momentos, quando se trata de benefícios, privilégios ou mesmo avaliação de desempenho, a gente tende a um certo viés de tratá-lo como cliente. Mas é importante essa distinção clara de papéis. Ele não é cliente, deve ser tratado como membro assistencial e particularmente com o papel de liderança do time assistencial”.
Na visão do superintendente do Hospital Nove de Julho, Luiz de Luca, o médico precisa ser tratado como cliente. “Ele é tratado como cliente, ele pode ser um cliente em todo o âmbito da indústria, interno e externo. As instituições veem o cliente externo como a pessoa que traz o mercado para dentro da instituição, e o cuidado que tem que ter é não ser mercantilista nesse processo”, opina.
O mercantilismo apontado pelo executivo tem fundamento na relação que os médicos têm com a indústria. Com remuneração baixa e atuando em vários hospitais, sem “pertencer” de fato a nenhum deles, os médicos se tornam vulneráveis, muitas vezes, a estabelecer um relacionamento anti-ético com a indústria.
“Hoje temos que ter claro a ideia que o mercado é negócio. A profissão médica está inserida em um modelo de negócio. Não vejo porque não fazer os médicos participar da visão de negócios”, diz o diretor técnico do Hospital Santa Catarina, Jaime Cobra.
Para o vice-presidente da Lincx, Jair Monaci, a discussão sobre o papel do profissional envolve uma série de fatores que, novamente, apontam para a falta de entendimento entre os elos e a falta de relacionamento. “Não é só a remuneração e é aí que o médico entra como cliente, mas o relacionamento é mais importante. O principal desafio é justamente relacionamento, pois nós sempre trabalhamos independentes, mas o objetivo deveria ser mais comum, esse talvez seja o ponto das diferenças que a gente tem na relação”, pontua.
O novo profissional
Diante da transformação pela qual a profissão médica vem passando, com os desafios de competitividade de mercado, o avanço da tecnologia e a sobrevivência num cenário cheio de turbulências, tem dimnuído drasticamente o número de profissionais que optam por manter um consultório. Dessa forma, ficou mais interessante para o profissional atrelar-se às instituições hospitalares.
Alguns apontam para o dilema corpo-clínico aberto ou fechado? Se a tendência é o corpo-clínico fechado, como remunerar? Muitas questões em aberta para o profissional central da saúde.
“O médico não é cliente do hospital, ele é protagonista, ele é o líder, o hospital e ele convivem. Sem corpo clinico o hospital não existe”, afirma Souza, da Amil. Para Cobra, do Santa Catarina, “ Não existe operadora sem médico e hospital sem médico é hotel”.
Para José Henrique Germann, diretor geral do Hospital Ribeirânia, a falta de fidelidade existe tanto do médico com o hospital, como na relação contrária, mas eles devem ter peso na gestão. “Temos que buscar atuação (do médico) no sentido colocar o médico dentro da estrutura dos hospitais e do processo decisório quanto a remuneração”.
Fonte SaudeWeb
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