Elas são desconhecidas da maioria da população, sobretudo dos jovens. Passam ignoradas pela cadeia produtiva e comercial e raramente entram na dieta brasileira.
Costumam crescer, aleatoriamente, em áreas de cerrado, caatinga e em regiões de transição — como as do semiárido e do Sudeste — que se limitam com o Centro-Oeste. Suas espécies são alvo frequente da destruição promovida pela mecanização agrícola. Ao mesmo tempo em que sofrem essas agressões, contudo, a guapeva, o murici e a gabiroba, entre outras frutas do cerrado, chamam a atenção de estudiosos de diversas universidades por seu incontestável poder de se defender e de se adaptar a situações adversas, além de manter as qualidades funcionais.
Foram exatamente as características nutritivas e medicinais desses frutos que levaram a aluna de doutorado Luciana Malta, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a investigar as atividades biológicas de suas cascas, sementes e polpas. O trabalho comprovou o alto potencial antioxidante e anticarcinogênico das três espécies. “Na primeira etapa do projeto, in vitro, fizemos um mapeamento para conhecer qual dos extratos das frutas era mais eficiente, mas em todas elas foram identificadas substâncias de potencial bioativo (veja infografia), com destaque para a gabiroba, que apresentou um alto poder de ação antioxidante”, explica Luciana.
Na segunda fase das pesquisas, in vivo, compostos bioativos encontrados na gabiroba e na casca da guapeva testados em camundongos revelaram efeitos positivos, como propriedades anti-inflamatórias, antimutagênicas e antigenotóxicas (para barrar a ação tóxica em genes que poderiam sofrer danos irreversíveis). A última etapa do doutorado de Luciana foi executada na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, onde ela testou o potencial antioxidante celular e antiproliferativo dos extratos das frutas em um banco de células no Departamento de Ciência de Alimentos.
Segundo a pesquisadora, outra vez a casca da guapeva se destacou. De acordo com Luciana, as conclusões de sua tese abriram perspectivas para que sejam feitos, no futuro, testes em humanos. Como numa corrida de revezamento, a aluna de pós-doutorado da Unicamp Aline Castaldi Sampaio será responsável pelas investigações com pacientes de câncer de mama, numa primeira fase. “Os extratos de gabiroba e de casca de guapeva, por exemplo, se revelaram nos testes feitos em Cornell como agentes que atuam na diminuição da proliferação celular de tumores de mama”, justifica Luciana Malta.
Voluntários
A nutricionista Elisa Goulart, da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, comemora a comprovação de benefícios de mais frutas do cerrado. “As substâncias presentes na composição dessas frutas impedem a liberação dos radicais livres e é claro que, se uma pessoa consumi-las diariamente, elas agem de forma preventiva.” Elisa explica que a oxidação causa desgaste no DNA e que o poder antioxidante de algumas frutas já foi comprovado em diversos estudos científicos. “É muito bom que existam agora mais três frutas daqui da região para oferecer qualidade de vida melhor às pessoas. É preciso divulgar essa pesquisa”, afirma a especialista, que também integra a equipe do Laboratório Sabin.
A professora Gláucia Pastore, da FEA/Unicamp, orientadora de Luciana e de Aline, explica que está em fase de negociações com o corpo médico do Hospital das Clínicas da Unicamp para a seleção de pacientes voluntários. Em seguida, a ideia é apresentar a proposta à Comissão de Ética da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ela espera que a nova etapa do projeto comece em março de 2012. “Além dos efeitos terapêuticos, pensamos em trabalhar também na prevenção, porque sabemos que o acesso regular a essas frutas vai causar efeitos benéficos. O problema no Brasil é que não há uma mobilização mais intensa em termos de prevenção. A visão aqui é mais clínica”, observa Gláucia.
Conhecimento escasso
A professora da Unicamp explica ainda que atualmente existe uma linha de pesquisa muito forte na instituição com frutas do cerrado — pouco conhecidas, mas altamente resistentes em condições ambientais adversas e “muito ricas” em compostos bioativos. “Embora pouco estudadas, sabemos que existe um conhecimento popular, sobretudo das gerações mais velhas, quanto às qualidades funcionais dessas frutas. O que estamos fazendo é procurar identificar essas propriedades e tornar mais fácil o acesso a elas pela população”, diz a especialista.
Luciana Malta acrescenta que o potencial anticâncer dessas frutas pode ser aumentado com o fracionamento dos extratos, com o uso de diferentes solventes, para que outros compostos bioativos sejam revelados. Ela explica que o poder desses extratos é medido primeiramente em ensaios antiproliferativos testando-se diferentes linhagens de células cancerígenas humanas, tais como melanoma, mama, rim, fígado, pulmão, próstata, ovário, leucemia. Elas são incubadas com os extratos das frutas e, em seguida, é observada capacidade de redução da divisão celular desordenada.
“As melhores frações dos extratos da guapeva e da gabiroba serão avaliadas também como agentes que induzem a apoptose (morte celular) em células tumorais”, destaca. A pesquisadora lembra que a experiência na universidade norte-americana serviu também para que ela agregasse conhecimento e pudesse ter a oportunidade de usar no Laboratório de Bioaromas da Unicamp, pela primeira vez no Brasil, a técnica de determinação do potencial antioxidante em células humanas, baseada em uma descoberta da Universidade de Cornell. Foi possível observar, segundo Luciana, que o potencial antioxidante do murici, da gabiroba e da guapeva é maior que o de frutas consumidas nos Estados Unidos, como blueberry e ameixa, entre outras.
Riqueza regional
Não é de hoje que a professora Gláucia Pastore e a doutoranda Luciana Malta se debruçam sobre propriedades funcionais de plantas do cerrado. Em 2005, uma parceria entre a Unicamp e a Universidade Católica de Goiás permitiu às pesquisadoras investigar o potencial antioxidante de outras cinco frutas típicas da savana brasileira — araticum, pequi, cagaita, banha-de-galinha e lobeira.
Do mesmo modo que se observa hoje com o murici, a guapeva e a gabiroba, as frutas da pesquisa anterior são praticamente desconhecidas do grande público, consumidas apenas por uma parte da população local. Um dos resultados da pesquisa mostrou, naquela época, que a casca e a semente do pequi e do araticum apresentaram grande concentração de substâncias antioxidantes. Ao analisar as condições em que essas frutas nascem, crescem e resistem, Gláucia Pastore observa a necessidade de difusão dessas espécies como forma também de preservá-las e ampliar o acesso a elas tanto por parte da população, quanto da própria indústria alimentícia e farmacêutica.
A professora também expressa preocupação com a riqueza do bioma e a devastação do cerrado. Ela lembra que o deslocamento das fronteiras agrícolas para o Centro-Oeste, nas décadas de 1970 e 1980, provocou a mudanças em mais de 60% das áreas de cerrado. “Hoje, apenas 20% da área original de cerrado permanece preservada”, ressalta. (CT)
Fonte Correio Braziliense
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