Será que estamos assistindo a um surto silencioso de morte súbita de
homens associada ao uso de sildenafil, medicamento usado para disfunção
erétil?
Há relatos isolados de profissionais que atendem casos de morte
súbita em motéis que encontram, entre os pertences da vítima, embalagens
de produtos farmacêuticos indicados para disfunção erétil, contendo a
substância sildenafil. Desconhecemos registros das equipes de emergência
(sejam órgãos da Defesa Civil, do Samu ou do Corpo de Bombeiros) que
poderiam ajudar a esclarecer a dimensão do problema. Desconhecemos
relatos de parceiros, amigos e familiares dos que morreram. Tampouco
médicos ou outros profissionais de saúde têm se pronunciado sobre o
assunto. Desconhecemos alertas públicos das autoridades sanitárias para
prover a população de informações sobre o produto ou seus riscos.
A aparente ocorrência de aumento de casos de morte súbita de homens
em uso do sildenafil — paralelo ao extraordinário crescimento das vendas
no país, de 2 milhões de unidades/ano para 30 milhões, com o fim da
vigência de sua patente — merece investigação de caráter público.
O sinal de alerta tem a ver com a saúde da nossa coletividade. O
sildenafil é fármaco usado para duas indicações terapêuticas diferentes:
hipertensão pulmonar e disfunção erétil. Recomendações técnicas
preconizam comprimidos de 5mg ou 20mg no primeiro caso e de 25 a 100mg
no segundo. Recente episódio relacionando o Ministério da Saúde, o
laboratório do Ministério da Marinha e o laboratório Labogen, do doleiro
Alberto Youssef, resultou em grande confusão e desinformação sobre as
duas condições.
A hipertensão pulmonar reflete estados patológicos e a disfunção
erétil associa-se a mudanças relacionadas ao envelhecimento, embora haja
notícias de uso recreativo em adultos jovens. Assim como outras
condições de saúde com importantes componentes culturais, tais como a
anorexia, as cirurgias plásticas estéticas, o uso abusivo de
tranquilizantes, antidepressivos e outros, a disfunção erétil é tema
silenciado. Seja o silêncio resultado do eventual constrangimento pela
perda funcional, ou do forte machismo da nossa sociedade, que associa
desempenho sexual a vigor e poder.
Nunca é demais lembrar que o capítulo da lei 8080/90 que trata da
Vigilância Sanitária determina ser de responsabilidade das autoridades
sanitárias eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde, além de
intervir nos problemas sanitários decorrentes da circulação de produtos.
E que houve episódios trágicos envolvendo o uso de medicamentos. Só
para citar alguns, muitas vidas foram perdidas após o uso do mercúrio
contra a febre amarela, no século 19. E, no século 20, registraram-se
mortes de crianças com insuficiência renal, após o uso de xaropes com
dietilenoglicol, e de asmáticos por uso de aerossóis com isoproterenol.
Na década de 1960, ocorreram mais de 15 mil casos de malformação
congênita em crianças cujas mães usaram talidomida.
A falta de conhecimento completo em relação ao uso de fármacos trouxe
à tona, de forma trágica, o que a ciência sustenta há décadas: não há
substância farmacologicamente ativa isenta de riscos e nem todos os
riscos são conhecidos antes de o produto estar no mercado.
Para que se tenha ideia da magnitude do problema, há contraindicação
para o uso do sildenafil concomitante ao uso de nitratos usados para
tratar doença cardiovascular, e para os indivíduos com hipotensão,
derrame recente ou infarto do miocárdio. Vale perguntar: quantos
brasileiros que estão consumindo as 30 milhões de unidades por ano de
sildenafil sabem disso?
As consequências do uso de produtos para disfunção erétil são tema
que não vem sendo tratado com responsabilidade pelos gestores do nosso
sistema de saúde. Medidas reguladoras do Ministério da Saúde — tais como
submeter a compra nas farmácias a controle rigoroso do receituário —
são importantes para estancar os possíveis efeitos adversos. Investigar a
ocorrência de complicações e mortes associadas ao uso do produto, e
divulgar os resultados, permitirá prover e não privar os indivíduos da
informação necessária para decidir de forma consciente e informada se
desejam, ou não, correr os riscos inerentes aos fármacos. Seja ele
constrangedor, obsequioso ou cúmplice, até quando aceitaremos o
silêncio?
Álvaro Nascimento e Suely Rozenfeld são pesquisadores da Fiocruz. Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Globo
Agência Fiocruz
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