Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena Gisele Milk: investigação deu a ela o apelido de "Erin Brockovich brasileira" |
Gisele Milk investigou pedidos de aposentadoria e encontrou uma comunidade que pode ter adoecido por contaminação química
Pilhas de processos amontoados recepcionaram Gisele Milk no primeiro dia de trabalho em um escritório de advocacia na cidade de Triunfo, a 30 quilômetros da capital Porto Alegre (RS). Não eram só as boas-vindas de um primeiro emprego como advogada recém-formada.
Era o começo do processo de montar um quebra-cabeças para desvendar os motivos que levaram uma comunidade da zona rural da cidade, formada por 200 famílias, a apresentar taxas de mortalidade por câncer 50% maiores do que a população do restante do município gaúcho.
Gisele, então com 24 anos, encontrou catalogados naqueles papéis amarelados processos trabalhistas antigos, individuais e não relacionados, que pediam aposentadorias por invalidez pelos mais variados problemas de saúde.
“Fiquei intrigada: a maioria dos clientes vivia próxima entre si, quase no mesmo quarteirão e um não sabia da reivindicação do outro”.
As doenças que existem praticamente lado a lado – câncer, doenças hepáticas, mutações congênitas – vitimaram moradores da vila operária do bairro Barreto, localizado na zona rural de Triunfo. Os vizinhos residem no entorno de um terreno de 16 hectares, onde funcionou, entre 1960 e 2005, uma fábrica de postes de energia elétrica, de propriedade da Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE).
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena Entrada do terreno onde funcionou a fábrica de postes elétricos |
Embaixo da terra hoje desabitada pela indústria restaram – segundo afirmam laudos feitos em 2011 a pedido da Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público (MP) de Triunfo – tonéis lotados de substâncias químicas, com potencial destrutivo à saúde, utilizados por décadas para preservar as madeiras no processo fabril.
Arsênio, cromo VI, polifepranol, dioxina são substâncias cancerígenas e alteradoras do DNA humano e a contaminação por elas ainda é ativa no local, de acordo com o MP. Até hoje, a comunidade vive em casinhas de alvenaria convivendo com o cheiro forte de metal após a chuva, como atestou o iG em visita ao local.
Os indícios de adoecimento da população por esta exposição química agora são investigados pelo governo gaúcho. Quatro anos antes, no entanto, Gisele Milk suspeitou ser este o elo entre os clientes do escritório onde conseguiu o primeiro emprego.
“Comecei um trabalho de formiguinha e hoje já tenho cerca de 100 ações em andamento.”
Ainda sem vitórias, a advogada brasileira ganhou de alguns colegas o apelido de Erin Brockovich, em referência à mulher que teve sua história conhecida no mundo quando, em 1996, a atriz Julia Roberts a interpretou no cinema.
Ficção e vida real
Os nomes de tóxicos que a própria CEEE admite ter usado no terreno – informação contida em cartilhas distribuídas à população local - também fizeram parte dos processos judiciais conduzidos pela verdadeira Erin Brockovich nos Estados Unidos.
Após anos reunindo provas como auxiliar de um escritório de advocacia, conseguiu uma indenização de 333 milhões de dólares para os moradores da cidade Hinkley, na Califórnia. Ela alegou que a população adoeceu por beber a água contaminada pelos químicos, disseminados no lençol freático local por uma fábrica. A história inspirou Hollywood e o filme foi campeão de bilheteria na época. Mas a “Erin” de Triunfo – que assim como a da vida real é loira, tem olhos claros e adora um salto alto – almeja outras semelhanças com a norte-americana.
“Trabalho para que as pessoas sejam indenizadas. Já perdi clientes para os mais variados cânceres. Represento duas mulheres que tiveram bebês que nasceram sem cérebro, sendo que a anencefalia é considerada uma condição rara pela medicina”, conta a advogada brasileira.
A CEEE nega a relação da contaminação com os danos à saúde da comunidade, mas afirma já ter começado o processo de retirada dos químicos do solo. Veja aqui o que diz a empresa.
As investigações do MP indicam que há contaminação ativa em sete pontos do distrito e que “os riscos ao ambiente e à saúde da população são concretos e iminentes”, nas palavras do promotor ambiental que cuida do caso, Luciano Gallicchio.
Horta e rioDurante a visita ao local, há 20 dias, a reportagem do iG encontrou na vila operária um misto de moradores desavisados e temerosos em relação aos materiais tóxicos existentes no local. Em parte das casas, hortaliças porcos e galinhas que servem de refeição para as famílias eram cultivados na divisa com o terreno condenado pela Promotoria Ambiental do Ministério Público.
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena Ampliar Uma das hortas cultivadas na divisa do terreno condenado pelo MInistério Público de Triunfo |
Muitos habitantes nadavam e pescavam no rio Taquari, localizado nos fundos da antiga fábrica, que também tem as águas investigadas pela vigilância ambiental por conta de “indícios de contaminação do lençol freático”, diz o processo de origem 139/1.08.0000360-3 do Ministério Público.
“Tomara que eu tenha adoecido por azar e não por causa da vila. Minha história toda é aqui”, suspirava Jonçara Nunes dos Santos, 53 anos, que mora no local desde 1972 e é uma das clientes de Gisele Milk. Há 15 anos, ela adoeceu do fígado. Também perdeu o filho de 22 anos por distrofia muscular congênita. O marido, que foi funcionário da fábrica de postes, teve feridas e descamação na pele. A irmã, que vive duas casas adiante, teve câncer nas duas mamas e o sogro – outro ex-empregado da fábrica – teve depressão profunda e cometeu suicídio.
O caso de Jonçara reúne a diversidade de doenças, físicas e mentais, que Gisele Milk descreve em seus pedidos de indenização contra a CEEE. Ainda não há, no entanto, comprovação científica de que a causa das anomalias desta e de outras famílias tenha sido exposição aos materiais usados nos postes.
A toxicologista do Laboratório de Poluição Ambiental da Universidade de São Paulo (USP), Gisela Umbuzeiro, atesta que todas as substâncias são muito perigosas, mas o grau de intoxicação e os danos provocados por elas depende do tempo e da forma de exposição.
Comprovar a relação de causa e efeito com as substâncias tóxicas “exige estudos e monitoramentos de anos”, diz a especialista. Este monitoramento já começou, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado e o Ministério da Saúde, respondeu por meio da assessoria de imprensa a Fundação de Proteção ao Meio Ambiente (FEPAM) do RS.
Alguns dados disponíveis em exames pontuais, apesar de inconclusivos, são preocupantes. Um deles – feito pela secretaria de saúde, finalizado em 2009 e que motivou o acompanhamento da Fepam – mostra que a taxa de mortalidade por câncer na vila operária de Barreto supera em 50% a taxa encontrada em Triunfo como um todo (nessa localidade são 18 casos de câncer por 100 mil habitantes contra 12 por 100 mil no restante do município).
“São indícios que apontam para um excesso de mortes, mas ainda não podemos afirmar a causa”, diz Virgínia Dapper, uma da médicas escaladas pela Fepam para monitorar as famílias de Barreto.
“Por ora, a incidência geral de outras doenças (hipertensão, diabetes, anencefalia) em Barreto não difere da de outros distritos, mas é fato que é uma área extremamente contaminada e precisamos de mais testes.”
O início
As suspeitas de que os clientes do escritório poderiam ter sido vítimas do coquetel de materiais tóxicos foram levantadas em artigos da internet que Gisele acessou nos primeiros 15 dias de trabalho (e de insônia). O estudo sobre a alta mortalidade por câncer, conta a advogada, ela teve acesso no dia em que conseguiu entrar em uma reunião da Vigilância Sanitária de Triunfo.
“Comecei a frequentar estes grupos, conversar com médicos, pedir ajuda na internet, fazer cursos de saúde ocupacional. Dormia no máximo 3 horas por noite naqueles primeiros meses.”
A então recém-formada não se lembra de ter o sono tão restrito. Nem mesmo na época em que cursava Direito na cidade de São Leopoldo, fazia estágio em Triunfo e morava em Porto Alegre, trajetos que somavam 4 horas dentro do ônibus – sempre na companhia da música de Nando Reis nos fones de ouvido. Já nesta época, Gisele se acostumou a acordar às 4h50 e só dormir a 1h, rotina repetida agora, no primeiro emprego com diploma.
Na trajetória de Gisele Milk, o início da pesquisa sobre a possível contaminação na vila operária coincidiu com o começo de um novo relacionamento amoroso, que também acabou na rota de suas investigações.
“Conheci o Glauco com 15 anos (e ele 18), engatamos um namoro, mas não deu certo”, recorda. “Reencontrei com ele trabalhando no mesmo escritório de Triunfo, um pouco mais gordinho, e também advogado. Embalados pela nossa profissão, voltamos a namorar.”
Glauco Costa dos Reis nasceu, cresceu e escolheu ser advogado justamente em Barreto, distrito que agora era motivo da insônia de Gisele e quase não deixava espaço para o cinema de sábado.
“Meu pai trabalhou na fábrica de postes, meus amigos todos também eram filhos de funcionários. Nunca desconfiamos e nem fomos informados de que viver ali traria algum dano à saúde. Quando a Gisele passou a discutir as suspeitas, a sensação foi de pavor” conta Reis.
Seis meses depois daquele primeiro dia de trabalho – com o namoro com Glauco já seguindo o caminho de um casamento – Dona Márcia, a mãe do advogado, morreu de câncer no estômago.
“A minha dor pessoal, por causa daquele tumor maligno que matou a minha sogra (Márcia, garante a família, não tinha antecedentes de câncer, não fumava e não bebia) aumentou minha vontade de fazer justiça”, diz Gisele.
“Ajuizei a minha primeira ação contra a CEEE em 2009. O caso da minha sogra está entre os 100 processos que hoje, após intensa investigação, estão em andamento”, diz.
Peixe pequeno
Gisele ainda não ganhou nenhuma ação. Seis delas foram arquivadas em primeira instância, e todas as outras ainda estão em andamento sem definição jurídica ou sanitária. Quase diariamente, conta, ela é procurada por algum morador de Barreto que perdeu alguém da família por câncer, doença incapacitante, aborto, anencefalia ou falência de algum órgão. A pilha de processos que a recepcionou no início da jornada quadruplicou de tamanho na mesa de trabalho.
Gisele ainda não ganhou nenhuma ação. Seis delas foram arquivadas em primeira instância, e todas as outras ainda estão em andamento sem definição jurídica ou sanitária. Quase diariamente, conta, ela é procurada por algum morador de Barreto que perdeu alguém da família por câncer, doença incapacitante, aborto, anencefalia ou falência de algum órgão. A pilha de processos que a recepcionou no início da jornada quadruplicou de tamanho na mesa de trabalho.
“Ficou mais triste trabalhar, pois hoje conheço os rostos que eram só números naqueles papéis”, diz.
Três vezes por semana, a advogada vai a Barreto conversar com os moradores da vila sobre os processos jurídicos. Na mesma rua, bate na porta de Vera Lúcia de Almeida, 57 anos, para saber se o câncer de mama, diagnosticado há dois anos, está de fato controlado. Dez metros adiante, verifica se Lurdelita Nunes dos Santos, 47, está fazendo o tratamento contra um tumor maligno que resultou na retirada dos dois seios. Dois quarteirões dali, indaga se Marlisa Francisco, 45 anos, está menos triste com a perda do marido por um câncer no intestino no início de 2011, dois anos depois da filha do casal ter morrido de leucemia (câncer no sangue) aos 17.
“Sou considerada peixe pequeno por alguns advogados. Outros colegas me acusam de querer tirar proveito dessa gente, só para ganhar algum dinheiro”, diz.
“Sem hipocrisia, obviamente, serei beneficiada do ponto de vista financeiro, caso consiga as indenizações. Mas e a saúde dessa gente?”
Os dias de visita a Barreto terminam sem café ou chimarrão como é costume entre os gaúchos. Como Gisele sabe da investigação sobre a contaminação da água, ela fica sem graça, mas acha prudente negar as bebidas feitas com a água dos poços, localizados perto do terreno contaminado.
Fonte Delas
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