Fernanda Aranda/ iG São Paulo Para moradores como Inocência, 80 anos, o mundo era escuro até de dia. Tudo por causa da catarata, doença que afeta a maior parte dos adultos de Mentai |
Mentai estava no escuro. Os geradores da comunidade de 900 habitantes – distante 150 quilômetros de Santarém (PA) – não funcionavam havia um ano, deixando sem eletricidade as casas de madeira e sem banheiro instaladas às margens do rio Arapiuns.
Para quem tem mais de 40 anos, no entanto, a escuridão não vem apenas da ausência de energia elétrica. A associação entre a falta de acesso a cuidados médicos e a intensa exposição solar a que são submetidos os moradores locais condena os olhos dos mais velhos a dois problemas oculares incapacitantes: a catarata e o pterígio, que eles chamam de “carne crescida”. Quase todos os moradores adultos de Mentai têm pelo menos um dos problemas – às vezes os dois.
Este foi o cenário que a ONG Expedicionários da Saúde encontrou quando chegou a Mentai. O grupo, formado por oftalmologistas, anestesistas e enfermeiros voluntários, desde 2003 leva atendimento clínico e cirúrgico a áreas da selva amazônica sem acesso à medicina. No meio da floresta, montam um hospital provisório de última geração.
Aos 80 anos, Inocência Alves Gomes estava completamente cega, vítima das duas doenças oculares, tão comuns em Mentai.
“Estou há 10 anos sem conseguir passar uma linha na agulha”, dizia.
Manoel Moreira, 81, também não conseguia mais colocar a linha na vara de pescar e nem observar o vaivém na comunidade onde nasceu, cresceu, teve 14 filhos e aprendeu a torcer pelo Flamengo, time do coração de quase 100% dos mentaienses.
Não há estudos científicos sobre a incidência de problemas oculares em Mentai. No Hospital Regional de Santarém – para onde os pacientes da comunidade vão só em caso de urgência médica, em trajetos que podem demorar 10 horas de barco – a fila para as cirurgias que revertem o quadro de catarata e pterígio soma 2 mil pessoas. A espera para deitar na mesa de operação pode se estender por 5 anos.
Luz em dose dupla
A 23ª missão dos Expedicionários da Saúde, acompanhada pelo iG Saúde, tinha como um dos objetivos operar o maior número possível de cataratas e de “carne crescida” em 10 dias de expedição em Mentai.
Enquanto a turma da saúde ocular tinha como principal desafio reverter a cegueira dos ribeirinhos, os advogados, pedagogos, enfermeiros e massagistas que, de forma voluntária, atuam na logística dos Expedicionários, tinham de fazer o hospital provisório funcionar em uma comunidade carente até mesmo de eletricidade.
A chegada da ONG trouxe luz em dose dupla à Mentai. A equipe logística do mutirão de cirurgia chegou cinco dias antes do grupo completo e, junto com a comunidade, conseguiu pleitear e pressionar o governo local para que os geradores voltassem a funcionar. Assim, o centro cirúrgico, as autoclaves, os microscópios e os bisturis puderam funcionar plenamente e tiraram do escuro uma parte dos moradores com catarata e pterígio.
Os pacientes cegos – de um ou dos dois olhos – percorriam um caminho de palha, entravam por uma porta fechada por zíper e chegavam ao hospital coberto por lonas, “porém digno de primeiro mundo”, como definia o oftalmologista Denis Hueb, que trabalhou com os colegas Celso Takashi, Fernando Kimura, Guilherme Carvalho, Antônio Facio Júnior, Daniela Inomata e Almerinda Azevedo.
Futebol e espelho
Usando um tampão nas vistas corrigidas, os pacientes dormiam uma noite em redes colocadas na igrejinha de Mentai, adaptada para ser uma enfermaria pós-cirúrgica. No dia seguinte, eram atendidos no barco “Abaré Saúde na Floresta” que serviu de consultório clínico para dar apoio ao centro cirúrgico. Lá, os médicos verificavam se tinha dado tudo certo, ensinavam como aplicar o colírio e forneciam óculos escuros para, dali em diante, o sol parar de castigar as pupilas dos moradores recuperados.
No total, foram 75 cirurgias oftalmológicas, organizadas pelas enfermeiras “maestras” da expedição, Gabriela Cabral, Lia Romero e Ana Paula Alves. O trabalho diligente das três não deixava faltar material em lugar algum.
Na estatística de operados, estão a costureira Inocência e o pescador Manoel. Ela, depois de uma década na escuridão, voltou a se olhar no espelho e até se achou bonitinha.
“E não é que eu ainda dou pro gasto?”, disse ela, no reencontro com o reflexo e já ansiosa para voltar a costurar. Seu Manoel nem bem tinha saído do barco-consultório e cutucou o amigo indicando, com o olho recém-operante, um das mulheres que caminhava por ali.
Naquele domingo, o Flamengo enfrentou o Botafogo, pelo Campeonato Brasileiro. Na casa da diretora do único colégio de Mentai, a televisão é quase pública. Via satélite, o aparelho voltou a funcionar graças ao retorno da eletricidade. E Manoel, junto com a comunidade reunida em volta do televisor, pode finalmente assistir a uma partida. O jogo terminou em 0 a 0.
Fonte iG
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