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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Doze minutos para a primeira emergência: reanimar um coração

Fernanda Aranda/ iG São Paulo
Crianças de Mentai: elas aprendem cedo que
 o socorro demora e às vezes nunca chega
Instantes após chegarem ao povoado isolado na floresta amazônica, médicos voluntários desafiam o relógio e atendem a uma parada cardíaca

O tempo é um dos grandes desafios da medicina. Em Mentai, comunidade ribeirinha a 150k de Santarém (Pará) e isolada de qualquer serviço médico, a população não usa relógio, mas conhece muito bem o impacto do tempo na saúde. Todo mundo aprende logo a temer duas coisas: a demora no atendimento de urgência e a Matita.

Na lenda local, após a meia-noite, o porco-do-mato vira Matita, uma figura misteriosa que não perdoa: mata de susto quem não deixa oferendas (mel e doces) na porta de casa. Na vida real, são os ponteiros do relógio que não costumam perdoar a população. É o que conta Valter Ferreira Macedo, 35 anos, agente de saúde e figura mais próxima de um médico para as 305 famílias locais, que vivem da caça e da agricultura de subsistência.

São em média 4 horas de espera para o socorro chegar, vindo de Santarém pelo rio Arapiuns, em um barco conhecido como “Ambulancha”. A demora é invariavelmente a mesma, seja para atender parto ou infarto. Um único minuto, no entanto, é capaz de definir quem sobrevive ou não a uma parada cardíaca.

“A gente improvisa. Caju é remédio bom pra qualquer doença. Macaxeira sara bicho ruim. Araçá acalma os nervos e dá força”, ensina o agente de saúde. As preces para o coração aguentar a espera pelo socorro médico também acompanham as doses dos remédios naturais.

Desafios
Quando deixaram os postos de trabalho nos melhores hospitais do Brasil para passar 10 dias em Mentai, os médicos e enfermeiros voluntários da ONG Expedicionários da Saúde nunca tinham ouvido falar da lenda da Matita. Mas sabiam que precisariam agir contra o tempo caso as urgências cruzassem a 23ª missão do grupo, acompanhada pelo iG Saúde.

Desde 2003, os Expedicionários percorrem as zonas na selva amazônica sem acesso fácil à medicina, atendendo quem não consegue ir ao médico e só cuida da saúde em iniciativas como esta. A ONG leva um centro cirúrgico de última geração “dentro da mochila”, instalado provisoriamente num clarão entre a beira do rio e a mata.

A bordo do barco “Abaré Saúde na Floresta”, os Expedicionários da Saúde ancoraram às 14h36 do dia 18 de agosto em Mentai, depois de 14 horas de viagem contadas a partir de Santarém (o único acesso possível). Durante o trajeto a embarcação foi transformada em cinco consultórios de clínica geral, ginecologia, odontologia, oftalmologia e pediatria para dar suporte ao hospital provisório. Com 12 minutos de terra firme, os voluntários não encontraram a Matita, mas os ponteiros do relógio já impuseram desafios.

Destinos
As 8 toneladas de equipamentos cirúrgicos ainda estavam saindo da bagagem para dar forma ao hospital no meio da selva e os expedicionários refletiam sobre as motivações para aquela missão que exigiria dormir em barraca e tomar banho frio durante 10 dias. No meio da bagunça, Raimundo Nonato Moreira, 61 anos, líder do time de futebol de Mentai, corria de um lado ao outro com a irmã Maria Izaneide Moreira, 56, no colo.

“Ela não respira. O coração não bate. Almoçou e caiu durinha. Acho que a asma atacou. Acode gente!”, pedia aos médicos e enfermeiros forasteiros que se aproximavam.

A primeira paciente da Missão Mentai mobilizou os 32 expedicionários, alguns deles marinheiros de primeira viagem. Aos poucos, os movimentos regressavam ao músculo cardíaco de Izaneide, graças à sincronia das mãos dos profissionais que faziam massagens reanimadoras na dona-de-casa, responsável por plantar e colher tudo que a família de 25 pessoas come.

Izaneide foi entubada e ficou sedada, em estado grave, em um dos consultórios dentro do barco. Do lado de fora, dois dos 12 filhos aguardavam notícias, preparados para o pior.

“Nunca vi ninguém sobreviver a um coração parado”, lamentava o caçula, de 16 anos.

Aos familiares resignados, entretanto, sopros de esperança foram trazidos pelo clínico geral Rafael Ceregatti e pelos anestesistas Filipe Takatohi e Roberta Cartafina – três novatos nos Expedicionários.

“A respiração ainda está fraca, há risco de morrer, mas estamos fazendo tudo o que podemos”, dizia Caregatti. “Vamos deixá-la pronta para ser levada à Santarém com segurança”, emendava Roberta.

Enquanto o destino de Izaneide era traçado, outros moradores de Mentai e das 8 comunidades vizinhas que seriam contemplados pela expedição também aguardavam atendimento. O relógio – mais uma vez ele – não podia comprometer as cirurgias previstas para aquela 23ª missão.

Dez dias antes da chegada da equipe médica, parte dos pacientes que seriam operados já havia sido selecionada. Cinco voluntários sempre chegam antes do grupo completo para fazer a triagem. Para atender a todos, era preciso colocar o hospital provisório para funcionar o quanto antes.

Princesa e enfermeira
Geise Carolina Silva, 7 anos, era uma das que estava na fila. Já aguardava dois anos e meio para retirar a “bolinha no umbigo” (hérnia umbilical) e finalmente deixar de sentir dor na hora da brincadeira – ser princesa é a favorita dela.

Os R$ 200 mensais que a família consegue vendendo milho nunca foram suficientes para bancar a operação de R$ 2.300 no hospital particular.

“E na rede pública demora demais. Ainda bem que ela será atendida pelos doutores da cidade”, comemorava mãe da menina, Maria Rosineide Silva.

Seis horas depois dos Expedicionários reanimarem o coração de Maria Izaneide, a Ambulancha fez a transferência da paciente à Santarém. Seis horas depois também, Geise acordava sem a hérnia no umbigo, retirada pelos cirurgiões Dario Labbate e Fábio Costa, de São Paulo.

No dia seguinte, as informações da cidade traziam boas novas. Izaneide estava viva, seguia internada, com o coração pulsando. Para Geise, eram planos sobre o futuro que palpitavam na cabeça.

“Aqui onde a gente mora, as mulheres podem ter duas profissões. Ou trabalham na roça ou são professoras. Até ontem, eu queria dar aula. Mas agora, fiquei com vontade de ser enfermeira”, dizia ela, no vaivém das redes, onde os pacientes operados eram colocados para se recuperar da cirurgia.

No dia 27 de agosto, o barco “Abaré Saúde na Floresta” partiu, levando os voluntários para casa e a marca de 100 cirurgias de hérnia realizadas, além de mais de 700 atendimentos clínicos, 5 deles emergenciais, como o de Maria Izaneide – uma picada de cobra, uma grávida com infecção generalizada e um acidentado de moto são outros exemplos.

A enfermeira Claudete Nogueira participou de todas as operações de hérnia e foi a responsável pelos novos planos profissionais de Geise. Ela demorou outras 23 horas para aterrissar em Minas Gerais e matar a saudade da filha, Ana Beatriz, 2 anos. Na bagagem, uma nova coleção de histórias para ninar a menina. Não viu a Matita, protagonista da lenda assustadora. Mas a musa inspiradora de Geise tem agora na memória um novo enredo para contar:

“Era uma vez uma princesa com hérnia que, após ser operada, decidiu ser enfermeira da floresta”. Ao contrário da Matita, essa história – quem sabe? – pode virar realidade.

Fonte iG

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