AP Depois do expediente, psicóloga "atende" super-heróis |
A psicóloga clínica Andrea Letamendi tem um trabalho "normal" durante o dia na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, onde atende principalmente famílias hispânicas do Condado de Los Angeles.
Mas depois do expediente de trabalho, ela se torna psicóloga dos super-heróis, uma atividade que ela exerce — e que lhe deu fama — no site www.underthemaskonline.com.
Descendente de equatorianos, Letamendi já colaborou com a roteirista Gail Simone ─ que escreveu para títulos da DC Comics como Mulher Maravilha e Aves de Rapina ─ e fez até mesmo uma "participação especial", como psicóloga de Barbara Gordon, a Batgirl.
— Sou muito fanática pelos quadrinhos, pela ficção científica e pela fantasia, e isso me permite combinar minha profissão e meu hobby. O trabalho ao que me dedico pode ser muito obscuro e tem um tom profundo e pesado. Por isso, quando eu faço isso com personagens de ficção ─ já que faço de uma maneira mais descontraída ─ consigo ter um descanso da realidade, que eu preciso.
No entanto, a psicóloga diz que a consultoria para os combatentes do crime na ficção também é uma forma de chamar a atenção para distúrbios mais sérios.
— Quando analiso personagens fictícios, quero não só educar as pessoas sobre doenças psicológicas sérias, mas também normalizar: essas condições são muito comuns, por isso não deve haver nenhum estigma a respeito delas.
Homem de Ferro
Em seu segundo trabalho, Letamendi tem "pacientes" como o Homem de Ferro, que ela diz ser "um personagem complexo".
— O alter ego é Homem de Ferro, mas Tony Stark é um ser humano: ao contrário de outros super-heróis, ele não tem superpoderes. Em suas encarnações mais recentes, ele sofre de ataques de pânico debilitantes, que no filme (Homem de Ferro 3) são representados frequentemente e realisticamente. Em pelo menos três ocasiões o vemos congelado, incapacitado por esses ataques.
Mas a psicóloga diz que evita "marcar os personagens com um diagnóstico, porque na minha profissão é necessário ter muitas sessões, avaliações e testes profissionais padronizados antes de determinar algo assim."
— Mas eu posso conjecturar. Dada a constelação de sintomas que ele apresenta ─ como pesadelos, pensamentos intrusivos recorrentes, evasão do evento traumático, hipervigilância e os episódios de pânico ─ se ele fosse meu paciente, eu consideraria que transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é um diagnóstico potencial.
Batman
Outro exemplo de super-herói que é humano é o Batman ─ uma das estrelas dos quadrinhos ─ e sua dor, particularmente nas versões mais recentes, está à flor da pele.
Na origem do personagem está o brutal assassinato de seus pais, que ele presenciou quando criança. É difícil encontrar uma ilustração de trauma mais clara, segundo a especialista.
— Bruce Wayne é meu exemplo de resiliência (a capacidade de se sobrepor à dor emocional e aos traumas): ele vivencia um evento extremamente traumático e ao invés de permitir que isso pese a ponto de que ele fique sem razão de viver, tem um dos trabalhos mais importantes da cidade. Como psicóloga, eu sei que isso não é estranho. Tratei de pessoas que depois de combater, depois de eventos como o 11 de setembro ou as guerras mais recentes, nos quais enfrentaram muitas adversidades, não só conseguiram se sobrepor como se fortaleceram.
Um dos aspectos interessantes do Batman é que a cidade em que vive desde que matam seus pais continua sendo ameaçadora, aterrorizante, um lugar que reflete o medo como é sentido por uma criança, e não desde a perspectiva de um adulto.
— Gotham City é todo um personagem. É um mundo que não existe, mas que todos podemos identificar: um lugar extremamente empobrecido, aterrador, violento, no qual as pessoas inocentes precisam ser defendidas. E é isso o que dá um propósito a Batman: se não tivéssemos Gotham City, o que ele faria?.
No entanto, a cidade parece ser outra prova de que, mesmo que não tenha se deixado vencer pelo que aconteceu, Batman também não deixou o trauma para trás: sua vida está regida por uma dor com a qual talvez já devesse ter aprendido a lidar, para levar uma vida normal.
— Isso é algo que alguns fãs e psicólogos se perguntam. Será que indica a presença de um distúrbio mental? Insisto em que é preciso de exames profissionais exaustivos para se chegar a esse tipo de conclusões. Mas é certo que ele vive com sentimentos de culpa, dolor e solidão, uma solidão extrema. Eu não diria que ele é perfeito, nem perfeitamente normal, nem perfeitamente são, mas faz tudo o que pode apesar do que passou.
Batgirl
Assim como Bruce Wayne, Barbara Gordon teve uma experiência traumática, mas ao contrário dele, não era criança. Não só era uma jovem, como também já era a Batgirl.
Aconteceu em um momento de sua vida em que havia se afastado de seu papel de super-heroína e estava passando um tempo com sua família. Se poderia dizer que estava aposentada. Ela foi atacada em sua casa pelo Coringa, vilão de Gotham City.
— Como no caso do Batman, esse personagem foi sendo escrito durante muitas décadas, mas nos últimos anos sua história foi reconcebida, se tornando uma das mais inspiradoras de todos os títulos da DC Comics — pelo menos para mim. A razão é que ela experimenta as feridas psicológica e física e, nos quadrinhos, a vemos se recuperando de ambas: durante o último ano ela está fazendo reabilitação física, mas também tem sessões de terapia em que uma psicóloga a questiona sobre o que sente ao ser atacada e como se sentiu ao ser física e pessoalmente violentada.
E essa psicóloga está inspirada na própria Andrea Letamendi, que foi consultora da roteirista Gail Simone. A psicóloga fictícia também manteve o nome de Letamendi.
— Para mim é muito especial, porque vejo minha profissão representada nesses quadrinhos de forma respeitosa, válida e correta, o que é muito importante. O que me interessa é educar as pessoas sobre a psicologia e que nós apaguemos o estigma dos problemas psicológicos, porque eles não são incomuns e é importante que as pessoas reconheçam os sinais e sintomas e saibam que há quem possa ajudá-las.
No divã
O problema é que se Andrea Letamendi tivesse a oportunidade de ter Tony Stark ou Bruce Wayne em seu divã e tratá-los com sucesso, talvez eles deixassem de ser super-heróis ─ um dilema que a BBC Mundo não resiste em colocar para ela.
— É uma pergunta válida. Certamente (os problemas) são algo que os motiva. Eu costumava tratar soldados que voltavam do Iraque e do Afeganistão com feridas físicas e emocionais. A pessoa se dá conta de que enfrentar o perigo é o seu trabalho: para isso ela foi treinada. A ideia de ir para um território perigoso armado e proteger os outros é o que eles fazem, e fora desse entorno alguns perdem seu norte. Alguns me diziam: 'Estou nos Estados Unidos, feliz de estar vivo com minha família, mas não voltarei a me sentir normal até que deixem de me mandar (aos locais de combate)'.
Eu não sei se gostaria de curar os super-heróis! Eles tem esta motivação intrínseca que os leva a proteger. Mas se algum deles estivesse realmente sofrendo e me dissesse 'não quero continuar tendo esses episódios', eu os ajudaria a se sentir melhor.
Fonte BBC/R7
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