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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Portugal: As soluções dos nossos problemas não se encontram nas farmácias

O novo Coordenador Nacional para a Saúde Mental fala com convicção e defende com coragem aquilo em que acredita. Psiquiatra há mais de 30 anos, trabalha para humanizar o tratamento dos doentes mentais e para nos libertar do estigma associado a estas doenças. Em tempos de crise e no país da Europa que mais ansiolíticos e antidepressivos consome, explica o porquê desta 'dependência' e o que devemos fazer para sair dela.

O que é a saúde mental? A saúde mental é um conceito lato que integra a psiquiatria e não só, que procura contribuir para o estado de satisfação e harmonia na vida, apoiando os que tenham dificuldade em gerir as inevitáveis decepções e frustrações inerentes ao estar vivo. Nos casos graves de perda da saúde mental, isto é, na doença mental, envolve tratamento por uma equipa multidisciplinar.

O sofrimento mental pode revelar-se apenas por sintomas físicos, socialmente mais aceites? Quando falamos em somatização, falamos das pessoas que não têm a capacidade para reconhecer o seu sofrimento psíquico. Têm um mecanismo que funciona como uma espécie de curto-circuito e evitam automaticamente ter a consciência de um acontecimento de vida que as preocupa. Depois há aquelas que têm consciência de que estão tristes, zangadas, em sofrimento, mas por causa do estigma em redor da doença mental, recusam uma génese psicológica para as suas queixas. Quanto a quem sofre de loucura, por definição, não tem consciência de que está doente.

O estigma ainda pesa muito? Ainda. A Associação Americana de Psiquiatria, na década de 70, tentou contorná-lo, introduzindo o conceito de distúrbio mental. Esta tentativa de alterar o paradigma foi quase em simultâneo com o conceito de saúde mental.

A loucura, como geralmente a concebemos, é o quê? São psicoses, situações graves em que a pessoa vive fora da realidade. A esquizofrenia será talvez a mais pesada, mas a doença bipolar e as depressões graves são mais frequentes: por ano, cerca de 1% para a esquizofrenia contra cerca de 10% para as outras.

Por vezes ficamos na dúvida: será que aquela pessoa é louca, ou apenas 'má'? Distingue-se? As perturbações de personalidade não devem ser confundidas com doença mental. Há pessoas, em regra com pouca resistência à frustração, que passam rapidamente ao acto quando não alcançam os seus objectivos, perturbações que podem estar na origem, em casos extremos, de comportamentos anti-sociais ou delinquentes (como roubar, atacar e até matar). Algumas têm uma inteligência acima da média e procuram atingir os objectivos sem olhar aos meios; outras vezes são pessoas pouco dotadas intelectualmente, mas que actuam com consciência de fazer mal, o que as distingue das 'loucas', das que não agem por maldade, mas porque acreditam que são perseguidas por quem atacam.

Quando vejo a lista dos Distúrbios Mentais, concluo que todos sofremos de algum... O que é que dizem as estatísticas? Há vários estudos epidemiológicos sérios e que se têm replicado em várias culturas, que mostram que em qualquer comunidade residencial, por ano, cerca de 30 pessoas em cada 100 têm uma qualquer perturbação psíquica, da mais grave à mais ligeira. A maioria vai procurar o clínico geral, mas sabe-se que o médico de família, em regra, só diagnostica a existência de uma perturbação mental em cerca de dois terços a metade destas pessoas.

E o que acontece aos outros? Destes 30, só quatro terão uma doença mental séria, com recomendação para um médico especialista, e só 0,5 das 100 pessoas iniciais necessitará de internamento. Estes estudos permitiram começar a pensar uma estrutura de saúde em rede, onde o clínico geral tem de saber tratar a maioria, de preferência com apoio do psiquiatra. Quando isso não acontece, nuns casos as queixas aumentam e recorrem, por vezes tarde, ao psiquiatra; outras vezes as pessoas amplificam, espontaneamente, as queixas orgânicas, ou são levadas a isso pelo médico, e entram numa roda-viva de exames cada vez mais complicados, mas não conclusivos, transformando por vezes as somatizações em hipocondrias, consumindo recursos infindos e caminhando por vezes para reformas precoces e uma forma de estar na vida indesejável - de queixosas crónicas.

Uma acusação comum é de que se recorre demasiado aos medicamentos, porque sai mais barato, do que uma psicoterapia ou mesmo ouvir o doente... Há muita evidência científica, e já com mais de dez anos, que demonstra que, sobretudo nas doenças mentais graves, o tratamento medicamentoso estrito não tem os mesmos efeitos do que uma associação de medicação com aquilo que tecnicamente se designa como 'integração em planos de reabilitação psicossocial'. Se um doente que toma um anti-psicótico for integrado numa unidade sócio-ocupacional durante seis meses, tem uma evolução mais favorável ao fim de um ano do que um doente que tome apenas os medicamentos.

E essas estruturas existem? São essas estruturas residenciais, sócio-ocupacionais e de apoio domiciliário que têm sido criadas pelo trabalho da equipa de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental, que coordeno, integrada na Rede Nacional de Cuidados Continuados. Nos casos menos graves, que felizmente são a maioria, admito que muitas vezes, pela pressa e, ultimamente, pela pressão das administrações em exigir resultados, muitas vezes fica-se pelos medicamentos, por vezes em excesso, prescindindo do que devia estar sempre presente - uma atitude psicoterapêutica, de escuta empática e de ajuda na elaboração dos problemas emocionais.

Mas a queixa também acontece nas consultas privadas... Mesmo em consultas privadas, também acontece, ou porque o médico não valoriza essa resposta mais humanizada, ou porque o doente recusa pensar-se e só aceita uma resposta química, mágica.

Quem olhe para as reformas na Saúde Mental, conclui que os nossos políticos também sofrem de uma perturbação grave! A explicação, para mim, passa pela circunstância dos problemas da doença mental estarem estigmatizados, desde sempre. Os hospitais psiquiátricos eram estruturas pesadas, em que as pessoas entravam, era-lhes atribuído um número e uma farda, e perdiam todos os seus direitos. O médico, nesses sistemas, tinha um poder enorme, a medicação tinha como objectivo basicamente sedar os doentes, e os enfermeiros nem sequer eram escolhidos pela capacidade física (para terem força para conter os doentes). O terror da psiquiatria hospitalar era perfeitamente justificado. Se somarmos a isto a complexidade do cérebro, percebe-se por que é que a psiquiatria foi ficando para trás. Mas a responsabilidade foi muita dos psiquiatras, que se sentiam cómodos em instituições onde ditavam a lei, num contexto em que a produção científica era muito reduzida, e onde os poucos que tinham uma atitude não alinhada se distribuíam por duas ou três escolas com orientação científica, mas pouco tolerantes para os seus pares. Quando chegavam aos políticos, com perspectivas por vezes divergentes, eles, por terem mais que fazer, e porque a saúde mental não era valorizada social e culturalmente, diziam, como ouvi : «Quando se entenderem voltem!»

E não foi na Idade Média... Foi apenas no início da década de 70 que as coisas começaram a mudar, levando a que a psiquiatria se fosse questionando e ela própria procurando integrar-se na medicina em geral. Em Portugal, esse movimento começou formalmente em 1983, com a extinção do Instituto da Assistência Psiquiátrica, integrado como Direcção de Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental na então recém-criada Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários. Foi um passo conceptual importantíssimo. E depois de várias convulsões, criou-se, em 1998, a nova Lei de Saúde Mental. Em 2006, o prof. Caldas de Almeida, com uma imensa experiência, foi convidado para coordenar o Plano Nacional de Saúde Mental.

Que objectivos já se cumpriram? O Plano tem objectivos até 2016 e alguns já foram ultrapassados, como fechar o Hospital Miguel Bombarda, criar unidades de psiquiatria nos hospitais gerais, estruturas para crianças e adolescentes, equipas de proximidade, porque há doentes que nunca virão ter connosco, temos de ir ter com eles.

Demasiado 'Drogados'

Somos o país europeu com um dos maiores consumos de antidepressivos e ansiolíticos e, segundo um estudo recente, o país, logo a seguir aos EUA, com uma maior incidência de distúrbios mentais. Consegue explicar porquê ?

E está-se a esquecer que somos dos maiores consumidores mundiais de bebidas alcoólicas, com os jovens a beberem mais, cada vez mais cedo e mais bebidas brancas. Para não falar na taxa alta de insucesso escolar e da gravidez na adolescência...

Pior ainda. Mas porquê?

É preciso estudar mais a fundo o porquê desta situação, saber, por exemplo, se a classe médica está a receitar demasiados antidepressivos (como acontece também com os antibióticos), mas inclino-me para pensar que a forma de organização social portuguesa, que nos tem tirado autonomia, e nos tem tornado muito imediatistas, é em parte responsável por esta situação, de ansiedade/insatisfação permanente, que procuramos neutralizar magicamente em vez de pararmos para pensar nas causas. As mudanças sociais nos últimos anos têm sido enormes, e se calhar ainda não encontrámos o caminho como sociedade... e isto não é por causa da crise actual, mas obviamente esta situação não ajudará.

A saúde mental dos portugueses vai agravar-se com a crise?

Não necessariamente. É evidente que o desemprego prolongado tem consequências, mas sabe que durante as guerras a taxa de suicídios diminui? Adorno foi o criador do conceito da 'realização pelo negativo', ou seja, que perante situações de adversidade as pessoas podem fazer mudanças profundas de vida, que não fariam noutro momento mais confortável e calmo. A resiliência vem ao de cima nestas alturas e espero que as pessoas compreendam que a solução dos problemas, das dívidas à fome, não se encontra nas farmácias. É preciso investir nas pessoas, no país, nas relações e deixarmos de ser tão facilitistas em relação a tudo. Não há respostas mágicas. Viver pressupõe morrer e saúde pressupõe adoecer; esquecer isto será fazer como a avestruz.

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