Dois anos e meio atrás, médicos descobriram um tumor do tamanho de uma bola de golfe crescendo na traqueia de Andemariam Beyene. O tumor continuou a crescer, mesmo após cirurgia e radioterapia.
Então, Paolo Macchiarini, médico do Instituto Karolinska, em Estocolmo, teve uma ideia radical: fabricar para Beyene uma nova traqueia feita de plástico e suas próprias células.
O campo da medicina regenerativa vem há décadas prometendo um futuro de órgãos substitutos produzidos em laboratório: fígados, rins, até mesmo corações.
Esse futuro ainda não passa, em grande medida, de fantasia de ficção científica. Agora, contudo, pesquisadores como Macchiarini estão construindo órgãos através de uma abordagem diferente, utilizando as células do corpo e deixando a maior parte do trabalho a cargo do próprio corpo.
Apenas alguns poucos órgãos foram feitos e transplantados até agora e são órgãos relativamente simples e ocos, como bexigas e como a traqueia de Beyene, que foi implantada em junho de 2011.
Mas cientistas em vários pontos do mundo estão empregando técnicas semelhantes com o intuito de construir órgãos mais complexos. Na Universidade Wake Forest, por exemplo, na Carolina do Norte, onde foram desenvolvidas as bexigas, pesquisadores estão trabalhando sobre rins, fígados e outros órgãos. Laboratórios na China e na Holanda estão entre muitos que estão trabalhando para construir vasos sanguíneos.
Alguns cientistas, como Macchiarini, querem ir ainda mais longe, atrelando os mecanismos de reparação do próprio corpo para que o organismo consiga reparar sozinho um órgão que esteja danificado.
Pesquisadores estão fazendo uso de avanços nos conhecimentos sobre células-tronco, células básicas que podem ser transformadas em tipos que são específicos de determinados tecidos, como o fígado ou o pulmão. Eles estão aprendendo mais sobre os chamados "scaffolds", ou suportes tridimensionais, que mantêm as células em seus devidos lugares.
Cientistas que fazem engenharia de tecidos avisam que seu trabalho é experimental e caro e que a criação de órgãos complexos ainda está no futuro distante. Mas eles estão cada vez mais otimistas.
"Ao longo de 27 anos fui me convencendo mais e mais de que isto é factível", disse Joseph P. Vacanti, diretor do Laboratório de Engenharia de Tecidos e Fabricação de Órgãos do Hospital Geral do Massachusetts e pioneiro nesse campo.
No caso de Andemariam Beyene, uma cópia exata de sua traqueia foi feita de um plástico poroso e fibroso.
Em seguida, a cópia foi semeada com células-tronco extraídas de sua medula óssea. Após apenas um dia e meio num biorreator -uma espécie de incubadora-, o implante foi costurado em Beyene, tomando o lugar de sua traqueia por onde o câncer havia se espalhado.
Hoje, 15 meses após a operação, Beyene, 39 anos e natural da Eritreia, está sem tumor e voltou a respirar normalmente.
Laboratórios de todo o mundo agora estão fazendo experiências com suportes ("scaffolds"). O objetivo é pegar, por exemplo, o pulmão de um doador, retirar dele todas as células, deixando apenas a matriz extracelular -uma complexa teia tridimensional que conserva os diversos tipos de células em suas posições e ajuda a comunicação entre elas.
Em seguida, esse suporte é semeado novamente com as células do próprio paciente. Macchiarini e sua equipe iniciaram esse trabalho em 2008, tendo feito implantes bem-sucedidos de traqueias de cadáveres, semeadas com células dos pacientes, em cerca de uma dúzia de pacientes. Pelo fato de as células do doador serem removidas, o processo praticamente elimina um dos grandes problemas dos transplantes: o risco de tecidos estranhos serem rejeitados pela pessoa que recebe o transplante.
Mas isso não soluciona vários outros problemas. Uma traqueia doada pode não ter o tamanho certo; ela precisa ser destituída de suas células e semeada com as células do paciente enquanto este aguarda e o procedimento ainda requer órgãos de doadores, que estão sempre em falta.
Assim, para Beyene, foi decidido produzir um suporte tridimensional de plástico. O suporte sintético de Beyene foi fabricado por cientistas do University College em Londres, usando como modelo imagens scaneadas da traqueia natural do paciente. Foi um trabalho belíssimo de engenharia de polímeros, feito sob medida para ser encaixado no peito de Beyene.
Mesmo assim, ainda era apenas uma peça de plástico poroso, sem vida. Para que se tornasse um órgão funcional, era preciso que os espaços minúsculos no plástico fossem preenchidos com células que eventualmente funcionassem juntas como tecido. Não serviriam células quaisquer; Macchiarini e sua equipe começariam com células-tronco de Beyene, obtidas de sua medula óssea.
As células-tronco humanas fazem parte do sistema do corpo para construir e se reparar. Elas começam sendo uma tábula rasa, mas podem tornar-se células especializadas, específicas de tecidos ou órgãos diferentes, como a traqueia. Nos últimos anos, cientistas vêm fazendo grandes avanços no entendimento de como as células-tronco podem diferenciar-se dessa maneira.
A equipe de Estocolmo esperava que, com a ajuda de drogas estimulantes das células-tronco, as células de medula óssea colocadas na traqueia começassem a se converter no tipo de célula apropriado para o lado interno e externo do órgão. Mas Macchiarini acha que o processo não funcionou exatamente conforme o planejado.
"Estou convencido de que as células que estamos colocando no biorreator desaparecem após dois ou três dias", disse. Mas, ao morrer, elas liberam substâncias químicas que enviam sinais ao corpo para que envie mais células-tronco da medula óssea, através do fluxo sanguíneo, para o local, promovendo o processo regenerativo.
Cinco meses após a cirurgia, descobriu-se que a traqueia de Beyene estava parcialmente forrada de células especializadas. E, na consulta seguinte, Macchiarini notou que o revestimento celular ainda estava crescendo sem sinais de infecção. "O paciente está conseguindo tossir", disse o médico.
Se as células estão sobrevivendo, significa que a traqueia está criando uma teia de vasos sanguíneos, através do mesmo processo regenerativo que produziu as células especializadas.
Todos os tecidos precisam possuir essa teia, para que cada célula possa receber oxigênio e nutrientes. Mas assegurar o desenvolvimento dessa teia é um desafio enorme.
"Desde o princípio, pensamos que a principal barreira ao êxito deste experimento seria o fluxo de sangue", disse Vacanti.
Os médicos de Beyene tinham uma maneira de se certificar de que a traqueia dele estava desenvolvendo uma rede de vasos sanguíneos. Eles provocaram propositalmente uma ligeira lesão no revestimento interno da traqueia.
"Se sangra, é porque está vivo", disse Macchiarini. A traqueia de Beyene sangrou.
Em junho, Macchiarini realizou cirurgias semelhantes em dois pacientes na Rússia. Ele disse que os dois já tiveram alta do hospital e estão se recuperando bem.
Mas, para ele, é preciso que exista uma solução menos complexa e trabalhosa, algo que não envolva procedimentos que podem custar até meio milhão de dólares. Ele visualiza suportes tridimensionais ainda melhores e sua implantação sem células, usando drogas para estimular o corpo a enviar células para o local.
Fonte Folhaonline
Nenhum comentário:
Postar um comentário