Na opinião do articulista, para além de especulações argumentativas de qualquer ordem (seja religiosa, política ou científica), a decisão do STF traz o suporte legal para o sofrimento da mãe e a coloca no foco da discussão
A delicada temática do aborto se faz mais uma vez presente nos noticiários em decorrência do julgamento do Supremo Tribunal Federal, legalizando o aborto de fetos anencéfalos. As questões que permeiam este tema, como a experiência de gravidez da mãe, merecem um olhar atento. Para avaliar melhor todo o tema, deve-se questionar o que se passa com a mãe e sua experiência corporal ao sentir que tudo se modifica em função de uma vida que não virá.
Quando se trata de um tema como o aborto, opiniões pessoais confundem-se e são, de fato, entrecortadas por posições ideológicas, políticas e religiosas. Argumentos ganham contornos teológicos ou científicos, sempre no intuito de mostrar a mais razoável das posturas.
Não é possível falar a respeito do aborto de uma posição neutra. Qualquer fala neste assunto já está por si revestida de um posicionamento contra ou a favor. Mas pretendo me desvencilhar ao máximo de algum posicionamento argumentativo para abordar a experiência corporal da mãe e o possível sofrimento ligado a este fato.
Nós somos o nosso corpo. Ele é a via através da qual nós podemos realizar nossa existência na vida cotidiana. O que acontece com nosso corpo nos diz diretamente respeito.
Durante a gravidez o corpo da mulher se modifica. A própria mulher está se modificando, se tornando mãe. A barriga que cresce é a vida sendo gerada, sendo gestada naquele ventre. A modificação do corpo é, portanto, o preparo para a maternidade.
O corpo modificado é a transformação da vida da mãe, do dia a dia dela, que agora aguarda a chegada do filho. Na gestação tudo muda, e não apenas o corpo. Muda a rotina, muda a perspectiva, muda o futuro. O futuro da mãe agora possui uma criança, um filho, uma nova vida para ser cuidada.
A mudança do corpo enuncia mais do que a própria gestação. Enuncia a mudança na existência da mãe, a mudança em seu futuro, a mudança em seu modo de existir e modo de ver a si mesma, os outros a sua volta, os valores de sua vida.
Claro que, em momento algum reputo a essas mudanças um aspecto qualitativo, bom ou ruim. Tais mudanças serem bem-vindas ou não para esta mulher é outra conversa. Mas a mudança do corpo da mãe aponta para a mudança geral que irá acontecer em sua existência diária, e é este o ponto!
Neste contexto, aparece a questão do feto anencéfalo. Como equacionar a noção de um corpo que se modifica, apontando para as próprias modificações na existência da mulher se tornando mãe, mas que gesta uma não-vida? Como pensar uma barriga que cresce, mas que neste desenvolvimento não há vida? O que dizer sobre a antecipação da criação da criança, do dia a dia futuro da mãe sabendo que tudo é em vão, que não haverá vida após o parto?
Parece que o corpo mudando, nesta situação, traz uma cisão entre o corpo sentido, os sentimento destas mudanças (gerar uma vida, cuidar de um filho futuro), e o fato concreto que se sabe, o racional (não há vida, não haverá filho a ser cuidado).
Assim, para além de especulações argumentativas de qualquer ordem (seja religiosa, política ou científica), a decisão do STF traz o suporte legal para o sofrimento da mãe e a coloca no foco da discussão, permitindo a pergunta: como traduzir, afinal, esta cisão inevitável entre sentimento e razão, entre o que corpo mostra e o que a mãe sabe sobre seu futuro sem filho?
É importante lembrar que o inevitável sofrimento gerado por esta cisão merece um acompanhamento psicológico, independente da decisão de interromper ou não a gravidez, a fim de trazer para a mãe a compreensão do que se passa com ela, mental e corporalmente.
*Vitor Sampaio é psicólogo, mestrando em Psicologia Clínica. pesquisa sobre a relação entre o corpo humano e o autoconhecimento, e as implicações éticas deste conhecimento com o mundo contemporâneo
Fonte SaudeWeb
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