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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Olhos refletem o melhor e o pior do SUS

Rodrigo perdeu a visão porque o atendimento básico demorou 3 anos. Ádylla voltou a enxergar com um transplante depois de 30 dias de espera. Conheça essas histórias

Ele ficou cego depois de amargar 3 anos de espera para conseguir um atendimento oftalmológico simples, capaz de reverter as sequelas do diabetes na visão.

Ela está de volta ao mundo que enxerga após ficar apenas 30 dias na fila para o transplante de córnea. A cirurgia de última geração minou a doença genética conhecida como ceratocone.

Cegos e operantes, os olhos de Rodrigo e de Ádylla esboçam os contrastes que marcam o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

Dois mundos
O pior e o melhor da medicina estampados nos rostos destes dois pacientes do País que dependem da mesma rede pública são definidos por uma palavra, avalia o pesquisador de oftalmologia Leôncio Queiroz Neto, do Instituto Burnier: acesso.

“Na oftalmologia, diferentemente da pediatria e da ginecologia, a estrutura para a consulta não é um simples consultório. São necessários aparelhos para fazer os testes oculares, mais caros. Por isso tantas deficiências no acesso e tantos abismos entre um caso e outro.”

No País, segundo os especialistas consultados pela reportagem, há um contrassenso: algumas vezes, os doentes que necessitam da alta complexidade e das tecnologias de última geração por já estarem em um estágio avançado da doença acabam mais acolhidos do que os que precisam de procedimentos básicos, justamente os que garantem a prevenção.

O mundo de Rodrigo
Rodrigo Parreira de Castro, 28 anos, carioca, está nas estatísticas de cegos pelo diabetes e dos que não conseguiram consulta na rede de atenção básica bo Brasil.

Hoje, são 6,3 milhões de diabéticos com a visão comprometida pela doença, de acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD).

Para fazer parte destes números, Rodrigo não realizou, por anos, o exame simples chamado de fundo de olho. Com o procedimento, é possível avaliar a interferência das falhas da produção de insulina na capacidade de enxergar.

Talvez, se tivesse sido monitorado, o paciente não sentisse hoje tanta saudade do próprio reflexo do espelho, da independência e do tempo em que escolhia as roupas no armário sem medo de errar a combinação entre calças e meias.

Desde 1994, Rodrigo sabe ser diabético (do tipo 1, que tem mais relação com a hereditariedade do que com hábitos de vida), época em que ficou órfão de pai e mãe. Até 2006, no entanto, nunca havia sido orientado a fazer o exame nos olhos pelos médicos com quem consultou.

Um dia, recorda, acordou com a vista esquerda “tapada”. No intervalo para a escuridão chegar à direita, escutou do médico que o acompanhava que "tinha de dormir sentado para tentar evitar o avanço da cegueira”. Rodrigo foi atendido em três hospitais, dois públicos e um particular.

“Fiz o cadastro em todas as unidades para receber o atendimento no oftalmologista e deixei meu telefone. Dormi um ano e meio sentado e não recebi um único telefonema”, conta ele – que guarda todos os papéis com as datas de inclusão nas listas das unidades hospitalares.

Um dia marcaram a operação. Ele chegou até a deitar na mesa cirúrgica do Hospital do Servidor do Rio de Janeiro para tentar, via laser, recuperar a capacidade de enxergar.

“Mas fui dispensado por falta de material. Outro um ano e meio passou. Nada.”

“Quando o sintoma aparece – a vista embaçada ou escura – a doença já está em estado avançado e nem sempre a reversão é possível”, explica a oftalmologista da SBD, Solange Travassos.

“Não há oftalmologistas suficientes na rede pública para dar conta desta demanda crescente de diabéticos. E os clínicos que cuidam do diabetes, não raro, acabam negligenciado os cuidados oculares. Os mais pobres acabam condenados à cegueira. O que é péssimo, já que é uma sequela absolutamente evitável”, diz a médica, que organizou uma ONG para acolher justamente jovens diabéticos com problemas na visão e desassistidos pelo poder público (são 200 pacientes só do Rio de Janeiro).

Hoje o estado da chamada retinopatia diabética de Rodrigo é tão avançado que ele não tem mais chance alguma, nem mesmo com cirurgia.

“Agora vou aprender braile. Tenho saudade dos livros”, conta Rodrigo.

O mundo de Ádylla
Outro lado da moeda vivencia Ádylla Larissa Souza do Vale, 19 anos, um dos nomes e sobrenomes dos 15 mil pacientes contemplados por um transplante de córneas em 2011, segundo contabiliza a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).

Ela festeja poder ver, agora, com nitidez o rosto da filha nascida há 20 dias no interior do Rio Grande do Norte. Não sente a menor falta da época em que não reconhecia as feições das pessoas distante só alguns centímetros, por causa dos 16 graus de miopia impostos pelo ceratocone.

A cirurgia foi feita em outubro do ano passado, mês em que o Rio Grande do Norte entrou para a lista de Estados que já conseguiram zerar a espera para o procedimento. São Paulo, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Goiás e Pernambuco estão neste grupo.

“Foi tudo muito rápido. Fiz a inscrição na lista do meu Estado e quando estava me acostumando com a ideia do transplante, ligaram no meu celular. Era uma sexta-feira. Segunda-feira, dia 12 de outubro e data do meu aniversário, estava de córnea nova.”

Vários fatores explicam a melhora expressiva na realização de transplantes de órgãos no Brasil, afirma Marta Salomão Libanio, coordenadora do Departamento de Córneas da ABTO.

“Nos últimos anos, existiu uma capacitação dos profissionais, os bancos de olhos foram descentralizados, a população passou a doar mais córneas. Tudo isso refletiu em um aumento de cirurgias (6,8% de acréscimo só no último ano) e uma redução expressiva na espera.”

Intersecção
As doenças oftalmológicas de Rodrigo e de Ádylla são diferentes. Ela, necessariamente, precisaria do transplante, hoje única alternativa para o ceratocone – que deforma a córnea. Ele poderia ter evitado a cegueira com medicamentos e colírios.

A demanda para um transplante, ressaltam os oftalmologistas, é muito menor do que a quantidade de pessoas que precisam de um acompanhamento ocular anual por causa do diabetes.

Se neste ângulo os problemas não podem ser comparados, não faz muito tempo a longa espera pelo atendimento também poderia pontuar caminho de Ádylla.

A tia da jovem, Ávila Cristina, 40 anos, é exemplo disso. Também portadora de ceratocone, ela precisou de uma córnea há cinco anos. Ficou na expectativa para a realização do transplante por três anos, o mesmo tempo que Rodrigo aguardou para saber que nada mais poderia ter sido feito no seu caso.

“Sem contar que moro em Santa Cruz (interior do RN), onde há apenas um oftalmologista. Meus problemas na visão começaram aos 13 anos, época da primeira consulta. O médico nunca desconfiou do ceratocone. Ele dizia que eu era míope e só”, conta Ádylla.

“Por minha conta, viajei100 quilômetrospara buscar consulta melhor em Natal (capital do Rio Grande do Norte). Lá constataram a doença já em estágio avançado. O transplante era emergencial. Tudo isso em 2011”.

A intersecção feita pela demora nestes dois casos provavelmente existira se o problema ocular fosse outro. O glaucoma, principal causa de cegueira no Brasil, também é atendido tardiamente, atesta o presidente da Sociedade Brasileira do Glaucoma, Vital Paulino Costa.

“No ambulatório de especialidade da Unicamp, 33% dos pacientes com glaucoma já chegam cegos. Isso se dá pela dificuldade do acesso na primeira consulta, meses e meses para o atendimento. Mas também ocorre porque a cultura de prevenção com olhos é falha. Muitos brasileiros negligenciam a importância do cuidado ocular, só lembram quando os problemas surgem”, acrescenta Costa.

Reflexos
Melhorar o cenário oftalmológico do País, acredita Marcus Safady, eleito presidente da Sociedade Brasileira de Oftalmologia, é ampliar a conscientização da população, sem que para isso seja necessário aumentar o número de especialistas em exercício.

“Fizemos um diagnóstico que vamos encaminhar ao Ministério da Saúde. O problema não está na oferta de médicos, mas sim no local onde atuam. A maior parte está em consultórios particulares que, caso credenciados ao SUS, poderia alargar a agenda pública de atendimento e de cuidados preventivos.”

Estudo feito pelo Conselho Federal de Medicina endossa a problemática citada por Safady. Enquanto a rede particular conta com sete médicos para mil habitantes, a pública tem um profissional no mesmo universo de pessoas.

A coordenadora da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos confirma que a descentralização dos bancos de olhos foi uma das responsáveis por fazer com que o fim da fila de espera por um transplante de córnea deixasse de ser ilusão de ótica.

Mas a distribuição igualitária ainda não existe em outras especialidades da oftalmologia. Por ora, os olhos de outros brasileiros como Rodrigo e Ádylla vão continuar enxergando o melhor e o pior do SUS.

Fonte iG

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